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03.06.2023 Virologia

Uma história da dengue

Artigo recupera papel dos estudos virológicos para compreensão da evolução da doença no Brasil

Uma história da dengue Créditos: Rodrigo Teixeira | Punto Comunicação

Até o início do século XX, a dengue era confundida com outras enfermidades, como a influenza – não por sua etiologia viral, mas pela sintomatologia. A história da dengue continuou nebulosa até a década de 1980, quando no Brasil ela passou a ser uma  “doença de estimação”, impulsionando a virologia nacional.

Para entender o processo desencadeado pela epidemia de dengue em 1986 no Rio de Janeiro e sua contribuição para a estruturação de pesquisas sistemáticas com o vírus no Instituto Oswaldo Cruz (IOC-Fiocruz),  o historiador da saúde Jorge Tibilletti de Lara  fez uma análise que foi publicada em um artigo na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos.

“Existe uma história da identificação do vírus, que tem sua chegada no Brasil confirmada primeiro em Boa Vista, em Roraima, em 1981. Depois,  em 1986 em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, e uma história clínica da doença, muito mais difícil de ser contada”, diz Lara, doutorando em História das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz.

“É nesse sentido que proponho olharmos para o papel dos estudos virológicos a fim de compreender a doença, levando em consideração a relação entre médicos e virologistas.” O trabalho, fruto do mestrado de Lara, procura demonstrar o papel que os estudos com o vírus da dengue tiveram na própria elucidação da enfermidade, à época ainda pouco conhecida, em uma transição de “doença-fantasma” para “doença de estimação”.

O artigo analisa quais foram os principais impactos da enfermidade naquele núcleo de pesquisa, na carreira de cientistas, na incorporação de novas técnicas laboratoriais para o estudo das arboviroses e no modo como a virologia se inseriu em relação aos novos problemas da esfera da saúde pública.

“Os arbovírus têm um ciclo complexo que foi elucidado pelos virologistas, resultando no esclarecimento da doença bem como na incorporação de novos testes e métodos laboratoriais, gerando uma expertise para a virologia brasileira que se reflete hoje”, escreve Lara no artigo.

Na década de 1980, a dengue não estava no radar de médicos e cientistas – ao menos não no Brasil – embora graves epidemias tivessem ocorrido, como a de Febre Hemorrágica da Dengue (FHD) em Havana, em Cuba, em 1981.

“A diferenciação, inclusive entre dengue e chikungunya, por exemplo, se deu no laboratório”, explica o historiador. “Foi com o isolamento e a identificação dos vírus, a partir da década de 1950, que alguma fronteira mais nítida entre essas doenças foi percebida. Mas isso não se refletia na clínica, porque não eram diagnosticadas em pacientes até pelo menos a década de 1980.” 


De acordo com Lara, embora traçar paralelos com outras doenças (como zika, chikungunya e Covid-19) seja sempre “manobra arriscada”, é inevitável perceber correlações entre suas diferentes trajetórias no tempo. No caso de males transmitidos pelo mosquito Aedes aegypti, como dengue, zika, chikungunya e também febre amarela, existe estreita relação entre a história dessas doenças, tanto na identificação dos vírus quanto no estabelecimento de modelos de diagnóstico. 

A febre amarela, por exemplo, foi um modelo para o trabalho com os estudos da dengue quando estes foram iniciados no Brasil, seja pelo seu largo histórico de pesquisas já consolidadas, seja pela aproximação entre essas doenças e vírus. No caso da emergência da zika, por sua vez, os estudos sobre dengue se tornaram referências para as novas pesquisas.

Com relação à Covid-19 – doença também de origem viral, porém não transmitida por mosquitos – o artigo destaca que a rapidez do trabalho de virologistas da Fiocruz, assim como de especialistas em todo o país, quando a pandemia emergiu pode ser atribuído, dentre outras coisas, à uma expertise consolidada em estudos com o vírus da dengue. 

“A Fiocruz historicamente se desenvolveu a partir da transformação de demandas sociais – epidemias, vacinação, criação de soros etc. – em linhas sólidas de pesquisa biomédica. Esse processo foi apontado já na década de 1970 pela historiadora Nancy Stepan, e é observável em vários períodos da instituição”, observa Lara.

Nesse processo de permanência da dengue como uma nova arbovirose urbana em escala continental, houve um esforço pan-americano de cooperação entre cientistas, havendo um intercâmbio intenso entre cientistas latino-americanos, observa Gabriel Lopes, doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz e pelo Departamento de História da Medicina na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. “No caso do Brasil, a partir de 1986, se construiu um intenso diálogo com cientistas cubanos, que enfrentaram com sucesso a epidemia de FHD sem precedentes nas Américas ainda em 1981”, esclarece.

História das ciências

O trabalho de Lara se insere no campo de pesquisa chamado História das Ciências, em diálogo com a História da Saúde. São “repartições” da grande área da História, voltadas à análise da historicidade das ciências, ou seja, das características históricas que conformam como tal o que hoje conhecemos como ciência. 

No caso da História da Saúde, os historiadores estão preocupados em compreender processos culturais, políticos, sociais e científicos inter-relacionados que constituem a história de doenças, médicos, pacientes, campanhas de vacinação, hospitais, entre outros.

No Brasil, os estudos com vírus se desenvolveram, assim como no resto do mundo, antes mesmo da existência de uma disciplina consolidada como “virologia”. Varíola e febre amarela foram as principais doenças de origem viral a serem estudadas nesse contexto, entre final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. 

A expertise, assim, em estudos com essas entidades biológicas, foi sendo adquirida ao longo do século XX, com maior desenvolvimento a partir da década de 1950, ante demandas apresentadas por epidemias de doenças infecciosas. E foi se modificando com o aparecimento de certas técnicas e instrumentos científicos.

Fatores institucionais e políticos também foram muito marcantes nessa história como, por exemplo, os marcos do golpe militar de 1964 e a redemocratização em 1985. Todos esses processos afetaram diretamente a estruturação de grupos de cientistas e suas trajetórias de pesquisa. 

Desse modo, quando a dengue surgiu em 1986, embora já existissem laboratórios de virologia com grande experiência em uma série de vírus, como o do Instituto Evandro Chagas, no Pará, e o próprio Instituto Oswaldo Cruz, seu caráter de novidade e o desafio de compreender o funcionamento de um “novo” vírus em circulação, ainda mais sendo um arbovírus complexo (transmitido por artrópode), acabou consolidando novos estudos em virologia. A partir daí, foi possível ter novas ferramentas para essa disciplina científica, como financiamento, visibilidade e a criação de departamentos e grupos.

Coincidência ou não, a Sociedade Brasileira de Virologia (SBV) foi criada naquele mesmo ano, em 1986, assim como o Laboratório de Flavivírus do Departamento de Virologia da Fiocruz, no qual os vírus da doença foram isolados e têm sido sistematicamente estudados até hoje.

“Nesse sentido, eu diria que a dengue trouxe uma grande experiência à virologia brasileira, tendo se tornado, junto de outras arboviroses, um dos principais temas estudados nesse campo, além de se constituir como um excelente modelo para o estudo de outras viroses”, afirma Lara, que atualmente desenvolve sua tese de doutorado sobre as aplicações dos radioisótopos na pesquisa biológica brasileira na segunda metade do século XX.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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