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24.10.2024 Clima

Paulo Saldiva: “O cientista poderá até morrer de infarto, mas não de tédio”

Com intensificação da relação entre mudanças climáticas, poluição e saúde, não faltará campo para a pesquisa, diz patologista

Para Paulo Saldiva, da USP, o enfrentamento de desafios relacionados às mudanças climáticas e à poluição precisa de ações integradas entre os municípios e políticas públicas | Imagem: Marcos Santos/USP Imagens

A cidade de São Paulo enfrentou uma crise sem precedentes há pouco mais de um mês, ao figurar entre as metrópoles com pior qualidade do ar no mundo, de acordo com ranking da agência suíça IQAir. Este cenário alarmante, porém, não surpreende os cientistas que há décadas estudam os impactos da poluição atmosférica na saúde humana.

O médico patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), destaca que os efeitos nocivos da poluição do ar são conhecidos desde os anos 1980.

“Observamos taxas elevadas de internações em Araraquara e Piracicaba, no interior do estado de São Paulo, devido à fumaça tóxica das queimadas de cana-de-açúcar, comparável à do tabaco”, diz ele.

“Pacientes chegavam aos hospitais com crises asmáticas, pneumonia e conjuntivite”, relata Saldiva, que integra comitês da Organização Mundial da Saúde (OMS) responsáveis por estabelecer padrões de qualidade do ar e definir o potencial carcinogênico da poluição atmosférica.

As pesquisas lideradas por Saldiva foram fundamentais para a identificação de compostos carcinogênicos na poluição do ar.

“Detectamos mutações em células da mucosa oral e linfócitos circulantes, evidenciando que a fumaça causa danos para além do sistema respiratório“, explica. Com o advento de novas tecnologias nos anos 2020, incluindo satélites e inteligência artificial, tornou-se possível realizar estudos mais precisos, tanto em escala regional quanto global.

Dados da OMS corroboram a gravidade da situação, já que associam os efeitos combinados da poluição atmosférica ambiental e doméstica a 6,7 milhões de mortes prematuras anuais no mundo.

A organização projeta ainda que, entre 2030 e 2050, as mudanças climáticas poderão causar aproximadamente 250 mil mortes adicionais por ano.

As emissões de gases de efeito estufa, principalmente da extração e queima de combustíveis fósseis, são apontadas como os principais fatores para essas alterações climáticas e para a poluição do ar.

Em entrevista ao Science Arena, Paulo Saldiva alertou sobre os perigos da atual onda de poluição causada por incêndios e destacou as oportunidades de pesquisa que emergem deste momento crítico.

O cenário atual de São Paulo serve como um alerta urgente para a necessidade de políticas públicas efetivas e ação global contra a poluição atmosférica e as mudanças climáticas.

Science Arena – Com as alterações climáticas e a poluição, os danos à saúde serão cada vez mais evidentes?

Paulo Saldiva – O excesso de calor, a umidade baixa e a poluição, juntos, são fatores predisponentes. São Paulo elevou os níveis de poluição. Na década, voltamos atrás em 50 anos. Para a poluição industrial ou veicular, nós podemos fazer inspeção e pedir fechamento ou interrupção das atividades.

Com o fogo, a gente não consegue combinar algo. Em contexto de crescimento das cidades, elas se aproximam da mata. Há uma promiscuidade entre fogo e fumaça.

Estudo o impacto da poluição na saúde há quase 50 anos e nunca vi um momento como esse ao longo da minha vida.

O excesso de material particulado é reflexo de uma condição multifatorial? Como prevenir?

As causas são mudanças climáticas locais e regionais por uso e ocupação do solo. Temos ilhas de calor. Isto é, o efeito do calor e da umidade também é heterogêneo nos bairros. Há bairros que são desertos de concreto, sem espaço para plantar árvore. Nestes casos, a estratégia pode estar nos chamados telhados verdes.

Não temos, por exemplo, nem calçada para plantar árvores nas comunidades mais carentes. Cabe a nós orientarmos sobre saúde. Se puder, fique em casa. Se for sair, use a máscara N95.

O sistema de saúde precisa orientar as pessoas sobre o papel da hidratação, incluindo a umidificação da mucosa oral e dos olhos. Fazer inalação também é indicado. Quando for limpar a casa, usar pano úmido. 

Alguns bebês e crianças desidratadas podem apresentar urina escura, que é um sinal de alerta. O idoso pode perder a sensação subjetiva de sede ou ter dificuldade em se expressar, dependendo da condição clínica. Além disso, aqueles que já têm doenças crônicas como asma, hipertensão ou insuficiência cardíaca precisam estar mais alertas.

Qual é a sua visão para o futuro?

Os padrões de qualidade do ar estão totalmente defasados para a saúde humana. Temos um dos padrões mais lenientes na América Latina. Cabe ao Estado, primeiramente, mostrar que isso não é bom e trabalhar para isso por meio da força da lei. E não basta só o município fazer rodízio veicular. Precisa haver integração das ações entre os municípios, por exemplo envolvendo a bacia hídrica. A água é de todos.

Precisa haver uniformidade também nos sistemas de proteção, como os da indústria de celulose, que são mais sofisticados. Torres de observação de fumaça, com balões que adentram a plantação para apagar o fogo. Assim como trator para fazer o isolamento da área queimada, para não extravasar.

Há, portanto, meios para mitigarmos os danos e a maioria das estratégias requer uma ação liderada pelo governo federal.

A boa notícia é que nós estamos discutindo abertamente sobre natureza. A natureza está nos dando lições muito importantes.

Está também surgindo uma nova geração de consumidores e eleitores, que vão optar por medidas sustentáveis. E não vai faltar campo de pesquisa. O cientista poderá até morrer de infarto, mas não de tédio.

Quais são os desafios e as vantagens de se fazer pesquisa com um time interdisciplinar, envolvendo cientistas do Brasil e de outros países?

No grupo de pesquisa, é importante termos gente de ciências climáticas, químico atmosférico, modelador, um profissional com visão de gestão de políticas públicas. Um exemplo de como a ciência foi importante foi com a abolição da queimada à cana, que é uma prática que começou em 1.500 no Brasil.

A colaboração entre países também é muito importante. Embora o que serve para Estocolmo não se aplique necessariamente no Capão Redondo [na periferia de São Paulo], aprendemos com as diferentes experiências.

O que não falta, infelizmente, é quantidade de dados epidemiológicos. No estado de São Paulo, é como se tivéssemos 44 milhões de pessoas colocadas em uma câmara cheia de fumaça, com umidade diminuída e temperatura aumentada, para ver quantas adoecem.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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