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A caixa preta da ciência de implementação

É preciso lançar luz sobre métodos que ajudem a disseminar práticas baseadas em evidências

Crédito: Shutterstock.

Especialmente a partir do movimento da Prática Baseada em Evidências, iniciado na década de 1990, temos testemunhado a multiplicação de estudos que sistematizam o conhecimento sobre intervenções que são úteis para solucionar problemas e agravos em saúde. Contudo, se, por um lado, temos cada vez mais estudos apontando para novas formas de cuidado (mais benéficas e custo-efetivas), por outro, na prática, ainda vemos frequentemente os usuários recebendo as mesmas ofertas de décadas atrás.

Dessa forma, parece pertinente perguntar o que acontece no meio do processo de tradução da pesquisa para a prática, e porque ele nos prende nesse lugar. É exatamente essa questão que a ciência de implementação busca responder.

A ciência de implementação é definida como o estudo científico de métodos pelos quais é possível promover absorção sistemática de descobertas de pesquisas e outras Práticas Baseadas em Evidências na rotina assistencial – e, portanto, melhorar a qualidade e a eficácia dos serviços de saúde (Eccles; Mittman, 2006).

Embora as bases que serviram para a articulação desse campo datem dos anos 1960, como a Teoria de Difusão da Inovação, de Rogers (1962), é a partir das limitações vivenciadas no escopo da Prática Baseada em Evidências que a ciência da implementação ganha espaço. Foi um período muito singular, em que pesquisadores do mundo todo perceberam que, apesar da comunicação sistemática de seus achados e de reiteradas sínteses de evidências, a inserção prática dos resultados de pesquisa ainda era incipiente.

Embora frente ao persistente distanciamento da academia e da prática clínica seja pertinente antecipar o fracasso de uma “tradução osmótica” das evidências, mesmo em cenários que essas evidências tiveram força para orientar políticas e programas de saúde, vemos que a boa vontade dos tomadores de decisões não é autossuficiente em influenciar o trabalho desenvolvido na ponta dos serviços.

Quem nunca se deparou com a máxima “no papel o SUS [Sistema Único de Saúde] é lindo”?

Especialmente a partir do insucesso de políticas públicas em produzir mudanças significativas nos indicadores de saúde, questiona-se como uma intervenção (ou programa), que teve sua efetividade comprovada foi assumida como diretriz para a prática de serviços e teve orçamento empenhado para sua viabilização, pode não estar gerando resultados.

A ciência de implementação insere nessa equação a perspectiva de que uma intervenção só pode produzir os resultados esperados se for efetivamente implementada. Ou seja, para além do conceito de efetividade da intervenção ou do programa, a ciência de implementação cunha o conceito de efetividade da implementação, tomando esse último como seu objeto de interesse, embora reconheça a interdependência de ambos para o alcance dos resultados.

Dessa forma, particularmente no contexto brasileiro, onde a proeminente produção acadêmica dos anos 1980 e 1990 acerca do planejamento em saúde tenha sido radicalmente substituída pela lógica da avaliação nos anos 2000, a ciência de implementação busca “abrir a caixa preta” que se tornou o processo de implementação de políticas públicas na saúde.

Isso significa lançar luz sobre os fatores que afetam a implementação, identificando e comunicando-os de forma sistematizada, não apenas para fins descritivos, mas para de fato trabalhar com eles, modulando o contexto em que as intervenções ocorrem, a fim de que possam ser implementadas.

Reconhecendo que a implementação de intervenções em saúde pode ser afetada por aspectos de diferentes ordens – como as características da própria intervenção, do contexto em que se busca inserir, das pessoas envolvidas em sua execução e do processo em si –, a ciência de implementação procura instrumentalizar pesquisadores e implementadores de políticas para identificar barreiras e facilitadores que se relacionam com cada uma dessas dimensões.

Essa instrumentalização se dá a partir de mais de 60 teorias, estruturas e modelos de implementação já registrados na literatura, que permitem a caracterização das barreiras e de facilitadores sob uma linguagem comum, favorecendo a sistematização desse conhecimento e o acúmulo teórico sobre as formas de lidar com eles.

A partir dessa perspectiva, podemos sintetizar dois dos componentes centrais desse tipo de estudo:

(1) A identificação das barreiras e dos facilitadores para incorporação da intervenção, política ou programa de saúde em diversos níveis;

(2) A identificação e o desenvolvimento de estratégias que superem as barreiras e potencializem facilitadores para incorporação da intervenção, política ou programa de saúde.

A premissa fundamental da ciência de implementação é que só a partir da identificação e do trabalho com as barreiras e os facilitadores podemos alcançar os primeiros desfechos de interesse no processo de tradução do planejamento em resultados de saúde: os desfechos de implementação.

Embora possua definições próprias, em uma aproximação prática podemos pensar os desfechos de implementação como os elementos que precisam ser assegurados a fim de garantir a efetividade da implementação, sendo alguns deles, segundo Proctor et al. (2011), a aceitabilidade, a adequação, a viabilidade e a fidelidade.

Grosso modo, pode parecer que para além da preocupação com os desfechos de implementação, isso é o que sempre fizemos – e de certa forma é. Em um contexto marcado muitas vezes pela escassez de recursos, utilizamos dos mais diversos artifícios para “colocar nossas intervenções na rua”.

No entanto, é preciso reconhecer que, frequentemente, esses artifícios ficam à sombra em nossos relatos de intervenção. Geralmente, o artigo científico publicado traz a preocupação em descrever aquilo que implementamos e o resultado obtido. Nos melhores casos, quando damos notícias sobre as estratégias que empregamos no processo de implementação, como a oferta de uma capacitação, por exemplo, as informações não são suficientes para garantir a sua replicação.

A oferta de capacitação pode ser entendida como uma das estratégias de implementação mais empregadas de forma deliberada e planejada nas intervenções em saúde. Talvez compartilhando da mesma ingenuidade do movimento de Prática Baseada em Evidências, nós nos apegamos à crença de que, a partir do momento que as pessoas tiverem conhecimento sobre o que precisa ser feito, como em um passe de mágica elas mudarão toda uma prática que por vezes está cristalizada há anos em um serviço ou instituição.

Porém, precisamos lembrar que processos multifatoriais precisam de soluções multifatoriais

Dentro do escopo da ciência de implementação são documentadas mais de 70 estratégias de implementação alocadas em nove categorias distintas: uso de estratégias avaliativas e iterativas; oferta de assistência interativa; adaptação e ajuste para o contexto; desenvolvimento de relações entre as partes interessadas; treinamento e capacitação das partes interessadas; apoio aos profissionais de saúde; engajamento de usuários; uso de estratégias financeiras; e mudança de infraestrutura.

Nesse sentido, além de nos instrumentalizar, a ciência de implementação também oferece um leque diverso de estratégias de implementação organizadas a partir de uma taxonomia comum e uma mesma forma de reportá-las em nossos estudos e comunicações.

Podemos sintetizar que uma das principais ofertas da ciência de implementação é o estabelecimento de uma linguagem comum que possa nos guiar na Torre de Babel que atravessa a implementação de intervenções, políticas e programas de saúde.

Essa oferta que, quando posta assim, parece simples, pode ser a chave para que além de decodificar as necessidades de modulação de nossos contextos, possamos comunicar mais efetivamente os elementos que levam nossas iniciativas ao sucesso ou à falha. A possibilidade que se abre a partir disso, é a de substituição da “caixa preta” da implementação por um acúmulo teórico-prático capaz de orientar iniciativas que encurtem a distância entre a pesquisa e a prática.

Carlos Alberto dos Santos Treichel é enfermeiro e doutor em Saúde Coletiva na área de Política, Planejamento e Gestão pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atua como professor do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP).

Saiba mais:

Eccles, M.P.; Mittman, B.S. Welcome to Implementation Science . Implementation Sci 1, 1 (2006). https://doi.org/10.1186/1748-5908-1-1

Proctor, E., Silmere, H., Raghavan, R. et al. Outcomes for Implementation Research: Conceptual Distinctions, Measurement Challenges, and Research Agenda. Adm Policy Ment Health 38, 65–76 (2011). https://doi.org/10.1007/s10488-010-0319-7

Rogers EM. Diffusion of Innovations (1ª ed.), Free Press, NYC. 1962.

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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