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02.06.2023 Saúde Pública

Os riscos da resistência bacteriana

Uso indiscriminado ou equivocado de antibióticos interfere na microbiota; mudança torna infecções bacterianas mais difíceis de serem tratadas

[Atualizado em 26/06/2023]

A resistência bacteriana é um fenômeno natural, que pode ocorrer espontaneamente. Entretanto, nas últimas décadas, a humanidade tem se deparado com um aumento importante nas taxas de infecções causadas por bactérias multirresistentes, que algumas vezes já foram rotuladas de “SuperBugs” ou “Superbactérias”.

O impacto disso é observado diariamente nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) dos hospitais, onde cada vez mais pacientes são acometidos por infecções bacterianas difíceis de tratar e, por isso, muitos acabam morrendo. Assim, em 2016 a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o fenômeno da resistência bacteriana como uma ameaça para a saúde pública. À época, estimava-se que o fenômeno poderia provocar 10 milhões de mortes por ano em todo o mundo em 2050. 

O que não se sabia, quando essas projeções foram feitas, é que haveria uma pandemia, causada por um vírus respiratório (Sars-CoV-2), que aumentaria muito o uso de antibióticos tanto dentro dos hospitais quanto na comunidade, piorando ainda mais esse cenário. Mas você já se perguntou: Por que isso ocorre? Como a resistência bacteriana se dissemina? Podemos fazer algo para evitar essa catástrofe? 

A descoberta dos antibióticos foi um grande avanço na medicina e já salvou muitas vidas. Antes disso, qualquer prego que machucasse um pé poderia levar a uma infecção grave resultando em amputação de um membro ou até mesmo a morte do paciente. Mas a decisão de usar antibióticos tem um preço: o impacto causado nas bactérias que habitam nosso corpo – a chamada microbiota normal. 

Pandemia e uso de antibióticos

O uso correto de antibióticos por si só já interfere na nossa microbiota. O uso abusivo ou incorreto (dose inadequada, interrupção do uso antes do previsto, horário de administração errado) interfere ainda mais nesse ambiente. O que aconteceu nos últimos dois anos foi um grande aumento no uso de antibióticos devido à pandemia de Covid-19. 

A insegurança, o medo e a falta de conhecimento levaram muitas pessoas ao chamado “tratamento preventivo” ou “tratamento precoce” com vários medicamentos, inclusive antibióticos. Entretanto, o que essas pessoas fizeram foi interferir na microbiota normal, principalmente do intestino. 

As bactérias da microbiota intestinal são mais afetadas quando usamos antibióticos pela via oral, sendo que as mais sensíveis vão morrer e as mais resistentes vão sobreviver. Essas que são “mais resistentes” vão conseguir, por meio de mecanismos próprios, permanecer no intestino. É o que chamamos de pressão de seleção. 

Quando o ambiente é favorável, elas se multiplicam e podem inclusive “passar” os genes de resistência para outras cepas ou espécies que estiverem no intestino. Devido à morte das bactérias mal adaptadas na geração anterior, ao longo do tempo, permanecerão no intestino um número maior de bactérias que apresentam algum tipo de resistência contra os antibióticos. 

Assim, no futuro, quando esse indivíduo tiver uma infecção, poderá não responder ao tratamento. É a velha máxima da evolução: “os organismos mais adaptados sobreviverão”. Mas será que apenas o uso de antibióticos na medicina humana tem impacto na resistência bacteriana? Como o ambiente influencia nesse processo? 

Sabemos que os genes de resistência ocorrem naturalmente em microbiomas ambientais, independentemente da ação humana. No entanto, nosso comportamento e nossas atividades atuais contribuem para a disseminação da resistência. Autores como Van Boeckel e colaboradores demonstraram, em 2015, um aumento de 36% no consumo de antimicrobianos entre 2000 e 2010 e 76% deste aumento ocorreu nos países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Uma curiosidade é que, nesses países, o consumo de carne aumentou no mesmo período, devido ao aumento do poder aquisitivo da população.

O sistema de produção animal, em larga escala, gera grandes volumes de resíduos que podem incluir concentrações significativas de antibióticos, uma vez que a quantidade de antibióticos utilizados na produção animal é maior do que a utilizada na medicina humana. Quase metade dos antibióticos utilizados na produção de carne nos países do BRICS é para outros fins que não os terapêuticos, como a promoção do crescimento. Esse fato tem sido associado ao aumento de bactérias multirresistentes detectadas em frangos e suínos nos últimos anos. 

Pecuária

A contribuição dos sistemas de produção animal na disseminação da resistência bacteriana para humanos tem sido questionada, uma vez que apenas alguns antibióticos usados na agricultura são considerados clinicamente importantes para a medicina humana. No entanto, o amplo uso de antimicrobianos na pecuária (por exemplo, quinolonas, colistina, cefalosporinas de terceira e quarta geração) para profilaxia, tratamento ou como promotores de crescimento destaca o papel dos sistemas de produção animal como reservatório de genes de resistência. 

Na pecuária, os antimicrobianos são frequentemente adicionados à ração ou à água potável, porque não é possível tratar cada animal individualmente. Portanto, é difícil controlar a dose de antibióticos que cada animal recebe. Assim, os resíduos de antibióticos podem auxiliar na seleção de bactérias resistentes e promover a troca de genes de resistência entre a microbiota normal e as bactérias patogênicas.

Como exemplo, destacamos a disseminação do gene mcr-1 mediado por plasmídeo. Este gene confere resistência às polimixinas e tem implicações relevantes para o tratamento de bactérias Gram-negativas, particularmente os produtores de carbapenemases (resistentes a carbapenêmicos).

Meio ambiente

Por fim, o ambiente em que vivemos também tem um importante papel na disseminação da resistência bacteriana. Os efluentes hospitalares, industriais e provenientes da agricultura e da pecuária descarregam uma grande quantidade de resíduos de antibióticos no ambiente, induzindo mutações nos microrganismos que ali vivem para que sobrevivam ao ambiente inóspito. Ainda que a maioria destes microrganismos ambientais possa não ser patogênica, muitos têm potencial de transferir os genes de resistência para outras espécies, assim como induzir recombinação genética levando à manutenção destes genes em microrganismos oportunistas. 

O contato cada vez mais próximo dos seres humanos com as áreas urbanizadas e poluídas aumenta o risco de disseminação de determinantes de resistência que originalmente estão no ambiente. 

Diante desta situação, precisamos melhorar os métodos de diagnóstico, monitorar e regular o uso de antimicrobianos e estabelecer políticas públicas direcionadas para o controle da disseminação da resistência bacteriana. Assim, poderemos evitar que a era pós-antibiótico chegue até nós.

*Andreza Francisco Martins é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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