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28.08.2024 Saúde Mental

Sidarta Ribeiro: “Psicodélicos podem revolucionar clínica médica”

Neurocientista explica por que este campo de pesquisa abre oportunidades na saúde mental, na neurologia e na troca de saberes com povos originários

"O campo da pesquisa biomédica de psicodélicos está crescendo rapidamente, mas ainda é relativamente pequeno", diz o neurocientista Sidarta Ribeiro | Foto: Luiza Mugnol

“A ideia de que a saúde mental é algo que pode ser gerado por substâncias independentemente do contexto é um equívoco.” A afirmação é do neurocientista Sidarta Ribeiro, professor titular e cofundador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Considerado um dos principais expoentes do chamado “renascimento psicodélico” (a retomada de estudos científicos para uso medicinal de substâncias psicodélicas), Sidarta Ribeiro defende que a nova onda de pesquisas nessa linha configura “uma revolução científica com potencial de se tornar também uma revolução clínica.”

Doutor pela Universidade Rockefeller com estágio de pós-doutorado na Universidade Duke, ambas nos Estados Unidos, Ribeiro publicou artigos em importantes periódicos científicos como Nature Mental Health e PLoS Mental Health, além da revista digital Sumaúma. Esses trabalhos focam na ciência psicodélica e no uso terapêutico de substâncias tradicionalmente utilizadas por culturas originárias.

Sua pesquisa abrange diversas áreas, incluindo sono, sonhos, memória, aprendizado, comportamento animal, plasticidade neuronal, psiquiatria computacional, cannabis e psicodélicos.

Além de sua carreira científica, Ribeiro ganhou reconhecimento como escritor após a publicação de O oráculo da noite (2019), que explora a história e a ciência dos sonhos. Seu livro mais recente, As flores do bem (2023), aborda a história e a ciência da cannabis, combinando seu papel de cientista com o de divulgador e pensador da evolução científica.

Em entrevista ao Science Arena, o pesquisador discute a evolução da ciência psicodélica e suas aplicações terapêuticas. Aborda questões cruciais que surgem com o avanço desses conhecimentos e práticas, considerando os impactos para pesquisadores, profissionais de saúde, órgãos regulatórios e a sociedade em geral.

Science Arena – Qual é o atual panorama da ciência psicodélica e de suas aplicações na área da saúde mental?

Sidarta Ribeiro – É importante lembrar que o chamado “renascimento psicodélico”, que começou há aproximadamente duas décadas, é, na verdade, a terceira onda. A primeira está em curso há milhares de anos e envolve todas as descobertas, invenções e construções culturais em torno de substâncias psicodélicas feitas por povos originários – incluindo, por exemplo, o peiote no México, a ayahuasca na América do Sul e outras substâncias na África e na Ásia.

A segunda onda aconteceu entre as décadas de 1950 e 1970, em ambientes urbanos, em contato com ciência, e mapeou muitas coisas interessantes, até que foi interrompida com o acirramento da “guerra às drogas”.

A terceira onda começou a ganhar corpo na primeira década deste século, quando os caminhos de pesquisa abertos pela segunda onda foram retomados, com o auxílio de metodologias mais poderosas, tecnologia mais avançada e estatísticas mais robustas. Hoje, a terceira onda já configura uma revolução científica com potencial de se tornar também uma revolução clínica.

Qual é a situação do Brasil no cenário dessa terceira onda?

O campo da pesquisa biomédica de psicodélicos está crescendo rapidamente, mas ainda é relativamente pequeno. O Brasil foi um dos poucos países que entraram na terceira onda quando ela estava começando. Hoje, temos pelo menos dez grupos independentes fazendo pesquisas relevantes na área e estamos na vanguarda da produção de conhecimento sobre algumas substâncias, como a ayahuasca, que, além de ser usada por vários povos indígenas brasileiros, tem seu uso religioso liberado no país – o que incentiva e facilita a pesquisa.

Quais substâncias e suas aplicações clínicas se destacam nos resultados de pesquisa?

As substâncias complexas utilizadas por povos ameríndios na forma de produtos naturais, como peiote, ayahuasca e cogumelos “mágicos” (que contêm, respectivamente, os psicodélicos mescalina, DMT e psilocibina), foram validadas pela pesquisa acadêmica por suas propriedades medicinais.

Substâncias sintéticas descobertas em laboratório no século XX, como o LSD, também estão validadas. Esses são os chamados “psicodélicos clássicos”, triptaminas e feniletilaminas.

Outras substâncias psicodélicas, como a ibogaína, descoberta e usada por povos originários africanos, e o MDMA e a ketamina, sintetizadas em laboratório, também têm propriedades valiosas para a área da saúde mental.

As psicoterapias com auxílio de psicodélicos são muito promissoras em relação a diversos quadros clínicos, incluindo casos extremos de trauma, desespero e suicídio iminente, depressão, tratamento de adições, melhoria da qualidade de vida de pacientes sob cuidados paliativos.

Há uma propriedade fundamental dos psicodélicos que se destaca pelo potencial terapêutico?

Sim, os psicodélicos produzem plasticidade neural, e de um tipo especial, chamada de metaplasticidade, que tende a ser mais equilibrada, mais homeostática que a plasticidade produzida por outras substâncias indutoras desse tipo de processo neurofisiológico.

Isso pode ajudar muito em quadros marcados pela ruminação de memórias e comportamentos viciosos, como nos traumas persistentes, nos transtornos do humor e nas adições.

Em termos de aplicações para a medicina, essa produção de metaplasticidade é promissora também para tratamentos neurológicos, para reparo, regeneração e manutenção da saúde do tecido neural.

Por que as experiências psicodélicas são importantes?

Há duas questões principais. A primeira, mais básica, é a compreensão da importância do setting, que é o contexto ambiental e relacional no qual acontecem as experiências e o processo terapêutico. Essa compreensão, que o conhecimento sobre psicodélicos traz com muita força, aliás, vale também para outras substâncias.

Resultados experimentais mostram, por exemplo, que o medicamento antidepressivo fluoxetina tende a ter efeito contrário, de agravamento de depressão, quando o setting é hostil ou adverso. E podemos supor que ele seja para parte considerável da população brasileira e mundial.

Então, a ideia de que saúde mental é algo que pode ser gerado por substâncias independentemente do contexto é um equívoco. E os povos e culturas que descobriram psicodélicos e souberam usá-los como poderoso recurso de cura ensinam que a interação dessas substâncias com o setting é uma dimensão fundamental da sua ação.

E quanto à experiência psicodélica em si?

O que tanto os saberes originários quanto uma grande quantidade de pessoas e comunidades não-indígenas que usam psicodélicos de diversas maneiras – como medicina, sacramento religioso ou instrumento de exploração de diferentes dimensões da consciência – nos dizem é que eles propiciam aventuras, epopeias interiores, subjetivas que são fundamentais nesses processos.

Chá de ayahuasca, produzido a partir do cozimento de folhas do arbusto Psychotria viridis e da casca do cipó Banisteriopsis caapi | Imagem: Shutterstock

As experiências psicodélicas se relacionam com sistemas de crenças e com processos conscientes das pessoas durante e depois dos efeitos das substâncias. Os resultados de pesquisa confirmam isso.

Uma experiência psicodélica bem conduzida é capaz de gerar efeitos benéficos de longo prazo. Por isso, os protocolos terapêuticos que incluem experiências psicodélicas preveem não o uso contínuo da substância, mas somente algumas sessões combinadas à psicoterapia.

Creio que a evolução das pesquisas vai demonstrar, com crescente clareza, que a tentativa de reduzir os psicodélicos a mais um tipo de comprimido que não produz experiência significativa de introspecção e alteridade leva à redução do potencial dessas substâncias.

Isso tem relação com a dificuldade de aprovação de alguns desses protocolos terapêuticos por órgãos regulatórios como a Food and Drug Administration (FDA), que regula alimentos e remédios nos Estados Unidos?

Sim. Primeiro, devemos lembrar que o atual renascimento psicodélico começou há pouco tempo, depois de décadas de inviabilização das pesquisas no contexto da chamada “guerra às drogas”. Preconceitos em relação a substâncias que, lamentavelmente, foram associadas ao crime e a riscos exagerados ou inventados ainda estão muito presentes.

Como qualquer substância, os psicodélicos têm seus grupos de risco, contraindicações, e requerem conhecimento e cuidado para serem bem utilizados em pacientes, mas podem ser usados com segurança por muita gente.

Além de superar preconceitos, os desafios para órgãos como a FDA e a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] têm a ver com o fato de que a aprovação de terapias com auxílio de psicodélicos não requer somente a análise da segurança e da eficácia do uso médico de um princípio ativo.

Trata-se de avaliar, além da própria substância, cada modelo terapêutico que se submete ao processo de avaliação dessas agências. Mas o que hoje pode parecer uma complexidade excessiva poderá se mostrar, futuramente, uma etapa necessária para um conhecimento mais completo e aprofundado da saúde mental e dos meios de promovê-la.

Há também a questão do “desmascaramento” do placebo nos ensaios clínicos, não é?

No caso dos psicodélicos, é fácil para os participantes de testes clínicos saberem quando tomaram a substância ou um placebo. Isso também requer uma perspectiva um pouco diferente na avaliação de resultados. Esse tipo de novidade pode suscitar resistências em estruturas de regulação conservadoras.

Você defende a valorização dos saberes e o reconhecimento dos direitos dos povos originários nas várias frentes do renascimento psicodélico. Explique o que isso significa.

Precisamos fazer valer o Protocolo de Nagoia para garantir que haja uma justa repartição de benefícios. Além disso, é hora de reconhecer que a gente está em apuros, precisando da ajuda de homens e mulheres portadores de conhecimentos e sabedorias diferentes dos nossos.

Devemos olhar para os lados e perceber que temos muito a aprender com outros povos, culturas e experiências humanas. Especialmente quando estamos lidando com medicinas que eles apresentaram para nós, junto dos saberes construídos e apurados ao longo de milhares de anos.

O desenvolvimento do campo de estudos sobre psicodélicos requer um processo paritário, de troca de saberes, em que a gente possa coletivizar essa experiência de cura.

Não entender isso, além de apropriação predatória, seria grossa ignorância e desperdício de oportunidades que precisamos perceber e aproveitar com inteligência e justiça. Estamos em boa posição para fazer isso. Mas precisamos fazer mesmo, e mais.

Para dar um exemplo, como aponta o psiquiatra e professor Ricardo Moebus [da Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais], entre as terapias integrativas acolhidas pelo SUS [Sistema Único de Saúde] há uma grande diversidade de práticas vindas de outros países e continentes, como acupuntura, reiki e homeopatia, mas ainda não há medicina quilombola nem indígena.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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