
A urgência de medicamentos verdes
A contaminação de ecossistemas com ingredientes farmacêuticos ativos é ameaça à biodiversidade, aos serviços ecossistêmicos e à saúde pública

O conteúdo de um comprimido, de uma dose de xarope ou de uma injeção não fica todo no organismo de quem o ingere ou o recebe diretamente na corrente sanguínea. Muito da produção global é descartada sem sequer ser consumida. A indústria farmacêutica nem sempre se desfaz dos seus rejeitos da forma adequada e, do que é usado pelos pacientes, uma parte é excretada nas fezes e na urina.
Isso é preocupante, uma vez que pelo menos 48% do esgoto mundial ainda é lançado sem tratamento nos cursos d’água, onde os chamados ingredientes farmacêuticos ativos (IFA) vão parar.
Em artigo publicado na revista Nature Sustainability, um grupo internacional de pesquisadores alerta que os IFA representam uma séria ameaça à biodiversidade, aos serviços ecossistêmicos e à saúde pública.
Segundo os autores, é necessária uma ação urgente para desenvolver drogas menos poluentes ou mais “verdes”, que mantenham sua eficácia, mas também minimizem os impactos ambientais.
Entre os diversos estudos citados em seu argumento, os pesquisadores mencionam um publicado em 2022 que mediu os níveis de 61 drogas diferentes em águas fluviais de 1.052 localidades de 104 países.
Em 43% dos pontos, os níveis excediam as dosagens máximas recomendadas. Alguns tinham mais de 34 ingredientes farmacêuticos ativos misturados à água.
Por conta dessa poluição generalizada, alguns ingredientes farmacêuticos foram listados como substâncias prioritárias nas regulações europeias sobre água.
Os autores do estudo de 2022 advertem que a poluição por medicamentos está além dos limites seguros, reforçando a necessidade de práticas mais amigáveis à natureza por parte da indústria.
“Há décadas evidencia-se que a exposição a baixíssimas concentrações de IFA e suas misturas podem causar severas alterações fisiológicas, morfológicas, comportamentais e de desenvolvimento na vida selvagem”, escrevem os autores do artigo publicado na Nature Sustainability.
Peixes feminizados
Em outro estudo citado, realizado em um lago do Canadá durante sete anos, peixes machos expostos a hormônios contidos em pílulas anticoncepcionais se feminizaram e tiveram a reprodução prejudicada, o que precipitou um colapso populacional naquele ecossistema.
“Quaisquer alterações na sobrevivência e na reprodução de espécies expostas a ingredientes farmacêuticos ativos terão, inevitavelmente, efeitos em cascata na ecologia e na evolução de comunidades e populações selvagens, potencialmente levando a declínios e extinções locais”, completam os pesquisadores.
Outro problema conhecido da exposição ambiental às drogas é a resistência antimicrobiana.
Ao entrarem em contato com microrganismos ainda na natureza, antibióticos e antifúngicos causam uma pressão seletiva que pode gerar cepas resistentes de fungos e bactérias, antes mesmo que estes cheguem aos hospitais.

Recomendações
Além de uma prescrição mais racional de medicamentos (“o mais sustentável é aquele que não é necessário nem prescrito”) e de campanhas de conscientização, os autores sugerem outras práticas para reformar o ciclo de vida dos medicamentos.
Um deles é o desenvolvimento de drogas que se degradam completamente e de forma mais fácil, um dos princípios da chamada “química verde”.
Além disso, a indústria deve reduzir a geração de lixo e o consumo de energia. Regulações mais severas, porém, precisam garantir que as mudanças sejam realizadas.
Outro ponto importante é a melhoria e a expansão dos sistemas de tratamento de água, que idealmente devem evitar que os IFA adentrem o ambiente. Além da quase metade do esgoto mundial ser lançado sem tratamento no ambiente, aqueles que passam por esse processo não contam com formas de remover os ingredientes farmacêuticos.
Técnicas para isso existem, como uso de carvão ativado e ozonização, mas, até a publicação do artigo, apenas a Suíça havia implementado um tratamento de águas residuais avançado em nível nacional, segundo os pesquisadores.
Os autores instigam desenvolvedores de medicamentos, fabricantes, cientistas e formuladores de políticas a reconhecer a crescente ameaça ambiental dos IFA, clamando para que “priorizem urgentemente o desenho sustentável de drogas mais verdes para prevenir futuros prejuízos ambientais”.
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