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19.08.2024 meio ambiente

Como as mudanças climáticas impactam a saúde de latino-americanos

Relatório da revista The Lancet elaborado por pesquisadores da América Latina alerta para o agravamento de doenças e perdas econômicas que podem atingir populações mais pobres

Jovens alertam sobre mudanças climáticas em manifestação na Argentina em 2021 | Imagem: Shutterstock

Por conta das mudanças climáticas, eventos extremos como chuvas intensas, secas severas e fortes ondas de calor devem se tornar cada vez mais frequentes no mundo. Na esteira desse processo, além do risco de surgirem novas epidemias, o recrudescimento da crise climática atual tende a agravar doenças respiratórias e arboviroses (como dengue e zika) e aumentar a prevalência de desnutrição e obesidade.

A relação causal entre mudanças climáticas, desastres e saúde ainda é um campo incipiente de pesquisa, mas que vem ganhando força nos últimos anos nas mais diversas áreas de interesse científico. 

Um grupo de 34 pesquisadores da América Latina, de diferentes campos do conhecimento, voltou os olhares para essas questões e analisou as consequências da crise climática na saúde humana.

A equipe desenvolveu aproximadamente 40 indicadores – elaborados por 23 instituições regionais e agências da Organização das Nações Unidas (ONU) – a serem observados em 17 países. Os resultados foram publicados no relatório The 2023 Latin America report of the Lancet Countdown on health and climate change, divulgado em maio.

“É um documento estratégico que traz evidências científicas importantes sobre o que está acontecendo nestes territórios”, explicou ao Science Arena a epidemiologista Stella Hartinger, pesquisadora do Centro Latino-Americano de Excelência em Mudanças Climáticas e Saúde da Universidade Peruana Cayetano Heredia, em Lima, e autora principal do relatório. 

Os pesquisadores encontraram dados preocupantes. A incidência de casos de dengue teve, em média, aumento de 54% em todo o território latino-americano entre 2013 e 2022. Destaque para Bolívia (145%), Peru (95%) e Brasil (94,5%).

“Aumentos de temperatura fazem com que os mosquitos se movam para lugares onde antes não estavam presentes e, agora, há epidemias de dengue em vários locais”, avalia Stella Hartinger.

Em 2022, a população latino-americana esteve exposta a temperaturas cerca de 0,38°C maiores do que em 2005. Paraguai, Argentina e Uruguai foram os países que sofreram maior aumento de temperatura média.

 Entre 2013 e 2022, crianças menores de 1 ano de idade foram expostas a 248% mais dias de calor, comparado com o período de 1986 a 2005. Já pessoas acima dos 65 anos viveram 271% mais dias quentes. Nesta faixa etária, as mortes prematuras aumentaram em 140% desde o ano 2000 – o que afetou negativamente a economia, segundo o relatório.

Além das perdas de geração de renda devido às mortes, o aumento do calor afeta a produtividade dos trabalhadores, ocasionando potencial perda de cerca de US$ 1,7 bilhões. Os principais setores afetados são os da construção civil e da agricultura. O setor da agricultura, por exemplo, foi o mais impactado no Equador, Peru, Guatemala, Paraguai, Honduras e Nicarágua.

Impactos na alimentação

Perdas no cultivo de alimentos impactam não somente a renda dos produtores, mas também o acesso a alimentos de maneira geral, o que pode ter consequências importantes para a saúde da população.

“As mudanças climáticas estão conectadas tanto ao aumento da prevalência de obesidade quanto ao de desnutrição, não de maneira direta, mas de maneira indireta por meio da produção de alimentos”, explica a nutricionista Aline Martins de Carvalho, professora e coordenadora do Núcleo Sustentarea da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e colaboradora do relatório na Lancet.

Turistas se refrescam em praia na cidade de Necochea, na Argentina, durante onde de calor em 2023 | Imagem: Shutterstock

De acordo com Carvalho, ondas de calor, incêndios, secas e enchentes podem afetar produções agrícolas de maneira severa, modificando não apenas a forma de produzir alimentos, mas também suas qualidades nutricionais.

Onze países tiveram aumento no número de dias em que as pessoas foram expostas a riscos de incêndios altos ou extremamente altos entre 2013 e 2022, quando comparados ao período de 2001 a 2010. Chile, Venezuela, Argentina, Colômbia e Brasil foram os mais afetados.

“O aumento de gás carbônico [CO2] em um ambiente, causado por eventos climáticos, pode alterar o teor nutricional de alimentos básicos para a população, entre eles arroz e milho. Isso pode provocar deficiências nutricionais”, comenta Carvalho, da USP.

A questão acaba agravando, portanto, o fluxo de desnutrição e insegurança alimentar e nutricional. Uma pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), chamada FIES (sigla em inglês para escala de experiência de insegurança alimentar), apontou que, em 2021, 37% dos latino-americanos declararam que não conseguem comer alimentos saudáveis e nutritivos, enquanto 33% afirmaram comer menos do que deveriam.

Além disso, cerca de 9,9 milhões de pessoas sofreram com insegurança alimentar moderada ou grave devido a um maior número de ondas de calor e secas, em comparação com a média de 1981 a 2010.

Grandes desastres ambientais podem provocar redução ao acesso a alimentos como um todo e, consequentemente, diminuição da qualidade da dieta, afirma a nutricionista Raquel Santiago, professora da Faculdade de Enfermagem e Nutrição da Universidade Federal de Goiás (UFG), colaboradora do relatório da Lancet e do Grupo de Estudos em Saúde Planetária da USP. 

“O custo de alimentos é bastante elevado, especialmente os de qualidade. Nesse caso, a população consome alimentos de baixa qualidade nutricional e dietas pouco diversificadas”, explica Santiago.

Com isso, enfatiza a pesquisadora, “há o incremento de doenças crônicas não transmissíveis de forma significativa, como câncer, hipertensão, doenças cardiovasculares e diabetes.”

De acordo com Santiago, observa-se hoje um aumento da insegurança alimentar pela diminuição do acesso aos alimentos em si e do acesso a uma dieta de qualidade e equilibrada, baseada no consumo adequado de nutrientes.

Uma dieta balanceada deve seguir a proporção aproximada de consumo de 50% de produtos de origem vegetal, como legumes e verduras, 25% de grãos integrais e 25% de proteínas, que não necessariamente precisam ser provenientes de carne.

“Proporcionalmente falando, o brasileiro tem preferência por alimentos de origem animal”, diz Santiago. “No entanto, reforço que nem sempre o acesso é adequado e, com isso, os riscos e casos de insegurança alimentar e nutricional aumentam”, ressalva.

Aumento da população urbana

Outra avaliação importante do relatório divulgado pela revista Lancet se refere ao aumento da população urbana nas cidades. A estimativa é de que 80% dos habitantes da América Latina residam em grandes cidades, onde há maior exposição a riscos climáticos e não-climáticos que afetam a saúde e o bem-estar. Uma pesquisa citada no relatório, feita em 208 cidades da América do Sul, apontou que os maiores problemas de saúde nos centros urbanos são doenças infecciosas, enchentes e ondas de calor.

A maioria (93,8%) dos habitantes de áreas urbanas tem acesso a fontes de energia limpa, mas a produção de eletricidade a partir do carvão cresceu 2,6%. Investimentos em matriz energética mais limpa cresceram em 2022 em todo o continente, mas o uso de combustíveis fósseis ainda é alto.

Em toda a região, 96% do transporte rodoviário é movido por queima de combustíveis fósseis, como óleo diesel, o que agrava o problema da poluição.

Bombeiro caminha em campo queimado após incêndio florestal em Bosa, na Colômbia, em 2023 | Imagem: Shutterstock

Mortes prematuras atribuídas a material particulado fino (PM 2.5) – partículas em suspensão no ar, geradas pela queima de biomassa, que contribuem para a poluição – aumentaram 3,9% entre 2005 e 2020, o equivalente a 123 mortes por milhão de pessoas. Os países mais afetados foram Chile, Peru, Brasil e Colômbia.

Nenhuma das 109 cidades com mais de 500 mil habitantes tem áreas verdes em níveis considerados altos. Apenas 12 têm espaços considerados moderados – sendo cinco delas localizadas na Venezuela.

A expansão de parques pode trazer benefícios significativos para a saúde e resiliência climática aos centros urbanos, de acordo com o relatório da Lancet, além de promover maior bem-estar físico e mental aos moradores, reduzindo a mortalidade.

“A expansão de áreas verdes resulta na redução da poluição atmosférica e sonora”, explicam os autores no documento. “Também pode aumentar a oferta de lugares para prática de exercícios e interação social.”

Desigualdades entre Norte e Sul

Os resultados observados demonstram disparidade da situação e das consequências climáticas entre o Norte e o Sul global. Isso explica a importância de um trabalho com foco na América Latina.

“No início das pesquisas do The Lancet Countdown, o foco era nos países do Norte global”, reconhece Stella Hartinger, de Lima, no Peru. “Contudo, o contexto do Sul é diferente. Nós nos aproximamos por causa da vulnerabilidade social, da pouca governança ambiental que temos em países do Sul, entre outros fatores”, comenta Hartinger.

Entre os países analisados no relatório, apenas o Brasil e a Guatemala relataram ter concluído avaliações de adaptação e vulnerabilidade às mudanças climáticas em termos de saúde. Brasil, Chile e Uruguai são os únicos com uma estratégia (ou plano nacional) desse gênero em vigor.

O nível de implementação do Brasil, no entanto, foi considerado moderado. Argentina, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Nicarágua e Peru relataram ter planos em desenvolvimento.

A maioria dos planos de adaptação às mudanças climáticas observados inclui informações sobre o impacto do clima na saúde da população e nos sistemas de saúde com base em evidências apresentadas na literatura científica internacional ou global.

A equipe latino-americana, no entanto, destaca a necessidade de se produzir mais de evidências, em nível local, para que haja mais clareza e consistência no planejamento e na implementação de medidas de adaptação às alterações do clima.

“Há um potencial muito grande no Sul global, principalmente na América Latina, para mitigar danos das mudanças climáticas”, avalia Raquel Santiago, da UFG. “Temos as maiores reservas ambientais ainda de pé, mas falta comprometimento das populações e dos governos na manutenção dos processos da natureza.”

“Não existe uma fiscalização eficiente de desmatamentos ‘clandestinos’, especialmente em regiões de bacias hídricas e matas ciliares”, argumenta Santiago. “É preciso ter uma linha de pensamento coerente e investimentos não somente em pesquisa, mas também em tecnologia.”

“Mudanças climáticas é um tema que não deveria ser politizado”, reflete Hartinger. “Não se trata de um problema exclusivo da direita ou da esquerda, não adianta apontar dedos para apenas um espectro político. É um desafio de todos.”

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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