
Novos usos para drogas conhecidas
Iniciativas internacionais buscam criar tratamentos a partir de medicamentos já existentes, mas é necessário avaliar custos e benefícios

Uma opção mais barata e menos incerta do que descobrir novas moléculas para tratar doenças é o reposicionamento de fármacos. A estratégia consiste em encontrar um novo uso para um medicamento que já está no mercado.
Estimativas sugerem que essa abordagem pode ser de 40% a 90% mais barata do que desenvolver novos compostos. Além disso, os estudos clínicos são geralmente mais seguros, uma vez que essas entidades químicas já tiveram testes iniciais de segurança realizados em humanos.
Duas barreiras consideráveis para o reposicionamento, porém, consistem no seguinte.
- Falta de incentivo para as detentoras das patentes investirem em estudos para determinar um segundo uso dos medicamentos. Ainda que tratar uma nova doença, em tese, agregue valor à droga, as regras europeias, por exemplo, impedem que o preço seja alterado, acabando com as esperanças de aumento de lucro da empresa detentora da patente.
- O chamado cross-label, uma versão do off-label, em que o remédio é prescrito para uma indicação que não está descrita na bula. No caso do cross-label, o detentor da patente consegue que o novo uso esteja autorizado apenas para a sua versão da droga. No entanto, o genérico é prescrito pelo médico, mesmo que aquele novo uso não esteja descrito na sua bula, privando o inventor da droga de uma venda.
“No longo prazo, isso corrói o incentivo para identificar, testar e autorizar novos usos”, escrevem pesquisadores de universidades da Inglaterra, Estados Unidos e da Dinamarca, em artigo publicado na revista Science Translational Medicine.
Na tentativa de superar essas barreiras, nos últimos anos foram criadas algumas iniciativas governamentais nos Estados Unidos, no Reino Unido e na União Europeia.
O grupo de pesquisadores afirma que os primeiros resultados são promissores, embora ainda seja cedo para saber o tamanho do impacto das mudanças nos sistemas de saúde e no bem-estar dos pacientes.
Os autores listam sete programas, implementados entre 2018 e 2021, que “apresentam uma miríade de oportunidades para organizações participarem em ações de reposicionamento de fármacos”
Apoio para pesquisadores
O UK Innovative Licensing and Access Pathway, do Reino Unido, de 2021, apoia qualquer tipo de organização por meio de um processo de seleção tanto de estudos pré-clínicos como de testes clínicos avançados, baseado nas necessidades dos pacientes e no potencial da droga de oferecer benefícios.
Os selecionados têm acesso a um time de especialistas que podem cuidar de questões regulatórias e de desenvolvimento.
Outro programa, financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) e conduzido pelo Centro Nacional para o Avanço de Estudos Translacionais (NCATS), ambos dos Estados Unidos, visa justamente a realização de testes clínicos de fases 1 e 2, mas não de fase 3. Exceções são abertas para doenças raras ou negligenciadas.
A iniciativa da União Europeia também fornece apoio, mas apenas para estudos acadêmicos e de organizações sem fins lucrativos. O financiamento dos testes clínicos deve vir de outros parceiros, assim como as autorizações para novos usos deve ser feita em parceria com a indústria.
O programa CURE Drug Repurposing Collaboratory (CDRC) é uma parceria público-privada entre a agência reguladora dos Estados Unidos (FDA), o NCATS e o Critical Path Institute. Iniciado para buscar drogas para covid-19, atualmente engloba outras doenças.
O programa se apoia em uma ferramenta on-line em que se pode buscar e reportar novos usos para drogas já aprovadas. O CDRC ainda coleta dados de saúde disponíveis, registros de doenças e revisões de literatura.
Em princípio, o objetivo é apenas atualizar diretrizes de tratamento, sem entrar na seara da regulação. No entanto, a iniciativa pode considerar patrocinar estudos clínicos e obter autorizações com os parceiros certos.
Entre todos os listados, apenas o Medicines Repurposing Programme, do Serviço Nacional de Saúde (NHS) do Reino Unido, pretende conduzir estudos clínicos com o mínimo de colaboração de parceiros.
Estabelecida em 2021, a iniciativa procura por drogas para reposicionar por meio da busca de registros de testes clínicos e colhendo sugestões da comunidade médica, como empresas, grupos de pesquisa e clínicos.
Os projetos contemplados devem, preferencialmente, se basear em testes clínicos de fase 2 e no fato de a droga em questão poder melhorar o padrão existente de cuidado para uma doença debilitante ou que ameace a vida.
Grupos de trabalho desenham estudos clínicos de fase 3 para preencher quaisquer lacunas de conhecimento. Uma vez que há informações suficientes para autorizar o novo uso, o programa fornece os dados para o dono da patente ou fabricante de genéricos que queira buscar autorização.
Cedo para avaliar
O projeto Renewall, da FDA, busca apenas por novas drogas contra o câncer, sem conduzir testes clínicos. Em vez disso, obtém dados da literatura e, se houver o suficiente para uma nova autorização, contata o fabricante para continuar o processo, embora este não seja obrigado a fazê-lo.
O também norte-americano MODERN busca reposicionar medicamentos baseado em dados da literatura, porém, para qualquer doença e apenas de drogas cujo inventor tenha abdicado da sua autorização de comercialização, desde que haja empresas de genéricos fabricando o medicamento. Uma vez que o novo uso é autorizado, porém, os fabricantes são obrigados a incluir a nova indicação na bula.
Os pesquisadores afirmam que, pelo fato de os programas serem relativamente novos, é cedo para determinar seu sucesso e longevidade.
Para ele, a iniciativa do NHS e as duas últimas da FDA representam verdadeiras mudanças de modelo de desenvolvimento de medicamentos.
O programa britânico obteve uma nova autorização e está em processo para uma segunda. O projeto Renewall da FDA, por sua vez, obteve duas novas em seis anos.
Não é possível dizer, ainda, se são casos isolados ou os primeiros de muitos novos usos com impacto na saúde pública.
Para os autores, indicadores de sucesso ajudarão a avaliar se os programas podem ser tomados como uma nova direção no desenvolvimento de fármacos e mesmo emulados em outros países.
Para determinar o sucesso, pelo menos cinco critérios devem ser levados em conta: número de novas autorizações, impacto clínico, número de pacientes tratados pelo novo uso, economia de gastos em saúde pública e redução de indicações “off-label”, especialmente se foi baseado em dados inadequados.
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