SOBRE
#Notícias
21.08.2024 Células

O atlas que pode revolucionar a medicina

Consórcio internacional de pesquisadores, com participação de brasileiros, revela detalhes da composição molecular e do funcionamento do organismo em nível celular

Com a compreensão em detalhes do funcionamento de células saudáveis, como as de pulmão (acima), será possível entender melhor como as doenças surgem e desenvolver novas formas de diagnóstico e tratamento | Imagem: Shutterstock

Embora o DNA das cerca de 37 trilhões de células de uma pessoa seja quase igual, entender o funcionamento de cada uma delas parecia, até pouco tempo atrás, uma tarefa impossível. Isso porque cada célula expressa um conjunto de genes diferentes para produzir proteínas – as moléculas que, de fato, realizam as atividades do metabolismo. Em meados de 2010, surgiu uma tecnologia que resolveu esse problema: o sequenciamento de célula única.

A técnica permite sequenciar todas as moléculas de RNA, que são sintetizadas a partir do DNA e controlam a produção de proteínas das células. Em 2016, com base nessa tecnologia, um consórcio internacional de cientistas começou o projeto Human Cell Atlas (Atlas de Células Humanas), que pretende mapear todas as células do organismo.

“As células humanas têm aproximadamente 20 mil genes, e cada uma expressa apenas cerca de 5 mil”, explicou ao Science Arena o biólogo celular norte-americano Musa Mhlanga, da Universidade Radboud, na Holanda.

De acordo com ele, o conjunto de genes que cada célula expressa permite que elas se especializem em tipos diferentes, como neurônios ou células da pele.

“No entanto, percebemos que os tecidos são um conjunto ainda mais heterogêneo de células do que pensávamos”, conta a bióloga Patricia Severino, pesquisadora do Hospital Israelita Albert Einstein e representante do projeto na América Latina.

Segundo a pesquisadora, dentro do mesmo tecido existem populações de células aparentemente iguais, mas diferentes na composição de RNA, o que indica funções distintas no organismo.

No Atlas, essas diferentes populações de células são agrupadas por afinidade. Um tecido ou órgão aparece como um conjunto abstrato de pontos, cada um deles representando uma célula. Cada tecido pode ser representado graficamente por células de diferentes cores, indicando uma variedade que não se conhecia antes.

“Não se trata de uma imagem visual das células, como nos atlas tradicionais ou no Google”, ressalva o bioinformata brasileiro Vinícius Maracaja-Coutinho, da Universidade do Chile e representante do Human Cell Atlas na América Latina ao lado de Patricia Severino.

“Trata-se, na verdade, de uma representação gerada por algoritmos que processam grandes quantidades de dados, referentes à quantidade de RNA produzido por cada gene em cada uma das milhares de células de um órgão ou tecido”, diz Maracaja-Coutinho.

Em cada célula, é possível acessar uma série de informações: desde o conteúdo de RNA e o estágio de desenvolvimento até as características do doador. “O atlas é elaborado a partir de amostras de órgãos ou tecido humano, obtidos em cirurgias, com o consentimento do paciente”, explica Patricia Severino.

“O principal objetivo do Human Cell Atlas é fornecer uma referência que mostre como são as células saudáveis”, diz Patrícia Severino.

Segundo ela, compreendendo em detalhes o funcionamento das células saudáveis, será possível entender melhor como as doenças surgem e desenvolver novas formas de diagnóstico e tratamento.

O Atlas não mostra uma representação anatômica dos tecidos, mas agrupa as células por afinidade molecular – acima, os neurônios humanos | Imagem: https://cellxgene.cziscience.com/

Sequenciamento acelerado

O projeto, que reúne 3.539 pesquisadores de 1.849 instituições de 101 países, organizados em 18 redes, cada uma estudando diferentes tecidos e órgãos do corpo, é liderado pelo Broad Institute, nos Estados Unidos, o Wellcome Sanger Institute e o Wellcome Trust, ambos no Reino Unido, e financiado principalmente pela Chan Zuckerberg Initiative – organização ligada ao fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, e sua esposa, Priscilla Chan.

Na América Latina, participam principalmente Chile, Colômbia, Peru, Mexico, Uruguai, Brasil e grande parte do sequenciamento de RNA das células é feito no Einstein. “É um projeto de ciência aberta que pode ser consultado gratuitamente por qualquer pesquisador ou médico”, enfatiza Mhlanga.

O biólogo explica que a ferramenta permite sequenciar 50 mil células a cada experimento – pouco perto do número total, mas o pesquisador aposta que a velocidade da tecnologia vai aumentar e o custo vai cair.

“Em 2015, era possível sequenciar apenas 200 células por experimento”, ressalta Mhlanga.

Segundo Sarah Teichmann, bióloga celular do Wellcome Sanger que concebeu o projeto, deve demorar cerca de cinco anos para concluir o atlas, como declarou em janeiro na revista Nature.

O maior desafio do projeto é armazenar e processar a grande quantidade de dados produzidos pelo sequenciamento.

“Conhecíamos centenas de tipos de células quando começamos o atlas, mas, desde então, descobrimos milhares de tipos novos”, declarou uma das fundadoras do projeto, a bioinformata Aviv Regev, hoje na empresa Genentech, ao jornal britânico The Guardian.

As células falam

“Além de identificar quais genes estão ativos nas células, a tecnologia permite medir a quantidade de RNA produzida para cada gene”, observa Mhlanga. Essa informação pode ser importante para determinar a função da célula no organismo e a forma como ela se comunica com outras células.

“As células produzem moléculas que são liberadas e se encaixam em receptores de membrana de outras células, servindo como sinalizadores químicos”, diz Maracaja-Coutinho.

Segundo o pesquisador, os algoritmos conseguem relacionar a quantidade de sinalizadores produzidos nas células que emitem o sinal, com a de receptores produzidos nas células que recebem a mensagem, determinando quais células se comunicam entre si.

Entender essa “conversa” entre células pode ser importante no tratamento do câncer.

Segundo Severino, células que estão entrando em metástase, se comunicam de forma diferente. Para ela, o atlas pode ajudar a identificar essas células.

“No futuro talvez seja possível desenvolver medicamentos específicos que impeçam a comunicação de células em metástase”, prevê Patricia Severino.

As microglias, células de defesa do cérebro, são compostas por uma variedade de tipos celulares, representados pela variação de cores | Imagem: https://cellxgene.cziscience.com/

De acordo com a pesquisadora do Einstein, será possível identificar quais células estão evoluindo para a metástase e quais respondem (ou não) a determinados medicamentos.

Precisão molecular

“O atlas permite enxergar o que cada célula está fazendo, quais genes está expressando e quais proteínas está produzindo”, esclarece Patricia Severino. Isso pode ser útil nas terapias que visam alvos celulares – por exemplo, que atingem moléculas produzidas em maior concentração em determinadas patologias.

Ao mapear as células, o Human Cell Atlas poderá ajudar no desenvolvimento de drogas que atingem alvos em células específicas. “Estamos dando mais um passo para a medicina de precisão”.

Algo assim aconteceu durante a pandemia de covid-19, quando os cientistas do Atlas ajudaram a identificar as células que expressam o receptor ACE-2, no qual o coronavírus se liga para entrar nas células humanas.

A descoberta ajudou pesquisadores de todo o mundo a desenvolver novos medicamentos contra o coronavírus.

No Brasil, o Human Cell Atlas deve possibilitar a descoberta de novos métodos de diagnóstico e tratamento personalizado para doenças tropicais negligenciadas.

“Isso poderá permitir uma melhor compreensão das doenças predominantes da região, como Chagas, leishmaniose, dengue, malária e chikungunya”, afirma Maracaja-Coutinho.

“O Human Cell Atlas está treinando equipes da América Latina e de outras regiões, desde a coleta até o sequenciamento e análise de dados”, diz ele.

De acordo com o pesquisador, o objetivo não é apenas coletar amostras, mas proporcionar desenvolvimento científico e tecnológico.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

Notícias

0 Comentários
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Receba nossa newsletter

Newsletter

Receba nossos conteúdos por e-mail. Preencha os dados abaixo para assinar nossa newsletter

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!
Cadastre-se na Newsletter do Science Arena