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Engrenagens e algoritmos: o “vapor” que moverá o século XXI

Mudanças tecnológicas em curso ainda não se difundiram a ponto de causarem efeitos positivos e externalidades em todo o tecido econômico e social

ChatGPT, Inteligência Artificial e Algoritmos: o “vapor” que moverá o século XXI Lançado em novembro de 2022 pela empresa OpenAI, o ChatGPT se baseia em algoritmos de redes neurais profundas | Imagem: Shutterstock

Ao longo dos últimos 16 meses, logo após o lançamento da ferramenta on-line ChatGPT3 pela OpenAI (agora, fortemente apoiada pela Microsoft), testemunhamos um crescente entusiasmo em torno das possibilidades tecnológicas da inteligência artificial (IA). 

Para muitos analistas, como, por exemplo, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee em seus dois últimos trabalhos – The Second Machine Age (W. W. Norton & Company, 2016) e Machine, Platform, Crowd: Harnessing Our Digital Future (W. W. Norton & Company, 2017) –, estaríamos na véspera de mudanças socioeconômicas, tecnológicas e culturais tão radicais, que só seriam comparáveis à transição entre feudalismo e capitalismo, possibilitada pela máquina a vapor a partir de 1750. 

Esse entusiasmo tem se revestido de uma profusão de matérias jornalísticas, cases empresariais, lançamento de aplicativos, posts em mídias sociais e, é claro, em uma nova onda de coaches, mentores e gurus que vão de te ensinar a “ganhar dinheiro com a IA”.

Uma grande e famosa consultoria já chegou a prever que a IA seria responsável por um gigantesco aumento de 26% no Produto Interno Bruno (PIB) chines até 2030!

Apesar desse enorme ruído, quando olhamos para os indicadores macroeconômicos mais tradicionais, como, por exemplo, a produtividade do trabalho e o consequente PIB da economia norte americana (ainda a principal economia do mundo), não é possível encontrar os impactos de toda essa avalanche tecnológica que estaria varrendo tudo em seu caminho. 

De fato, as maiores consultorias de mercado previram para 2023 uma recessão e, apesar da surpresa com números finais levemente positivos para este ano, essas mesmas consultorias continuam prevendo pouco crescimento em 2024 para a economia dos Estados Unidos. 

Isso porque não se observam mudanças contundentes na produtividade do trabalho dos Estados Unidos ao longo dos últimos 20 anos. 

Mas, então, onde estariam os efeitos da IA derivados de sua quase “mágica” capacidade de transformar tudo o que toca? É verdade, contudo, que os indicadores citados não dependem apenas da mudança tecnológica: pandemias e guerras também causam flutuações. 

Contudo, mesmo assim, se a IA é tão poderosa quanto se propaga – alguns falam até numa “singularidade iminente”, situação na qual a IA atingiria a inteligência humana – era esperado um inequívoco impacto macroeconômico. 

O fato é que, não estamos observando isso. Por quê?

Mudanças ainda não difundidas

A primeira e mais simples resposta estaria relacionada a uma superestimação das possibilidades tecnológicas. Já vimos isso antes com, por exemplo, o hype da clonagem por volta dos anos 1990, ou mesmo as expectativas sobre o uso da energia nuclear após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Nesse contexto, a AI seria mais uma tecnologia que estaria em um momento de grande expectativa, o qual seria seguido por uma fase de desilusão e que, finalmente, culminaria em um período de uso economicamente relevante – porém, restrito a nichos econômicos específicos. 

Esse não nos parece ser o caso, principalmente porque a IA, diferentemente de outros casos históricos, aumenta a capacidade de tratar informação. E quanto maior for essa capacidade, maior tende a ser a produção de nova informação, criando um processo exponencial de inovação. 

Uma segunda interpretação, mais complexa, mas mais adequada (pois considera a natureza diferenciada da IA, cuja própria inovação gera uma nova onda de inovações), afirma que as mudanças tecnológicas em curso ainda não se difundiram a ponto de causarem efeitos positivos e externalidades em todo o tecido econômico e social. 

Ou seja, ainda estaríamos tentando compreender como explorar todo esse vasto potencial. Essa interpretação é defendida pelos autores antes citados. 

Locomotiva a vapor, Cottbus, Alemanha
Locomotiva a vapor, um dos símbolos da primeira fase da Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra no século XVIII e que teve como um dos principais acontecimentos a invenção da máquina a vapor | Imagem: Shutterstock

Seria algo como ser um servo no regime feudal, vendo pela primeira vez uma geringonça chamada de “máquina a vapor” mover um tear e, só a partir disso, tentar extrapolar as consequências socioeconômicas dessa nova tecnologia que criaram o conceito moderno de família, escola, empresa, turno de trabalho, tempo e quase tudo que definimos como rotina no capitalismo contemporâneo. 

No entanto, as profundas mudanças permitidas pela revolução industrial nos séculos XVIII e XIX, que foram fortes o suficiente para “dobrar a curva da história humana”, só ocorreram depois que a tecnologia da máquina a vapor se difundiu pela maioria dos setores econômicos. 

Isso porque a simples introdução de uma inovação, mesmo radical, não é suficiente para promover desenvolvimento socioeconômico passível de ser observado em indicadores macroeconômicos. 

Acontece, portanto, que no caso da IA – e por maior que seja a velocidade de difusão –, esse processo nunca é automático, principalmente porque se trata de um fenômeno social extremamente complexo. Além de não ser automática, a difusão não é garantida.

A história da tecnologia está longe de ser tecnologicamente determinada. 

Ao que tudo indica, veremos transformações contundentes promovidas pela IA, mas tais transformações demandarão algum tempo e não serão diretas nem lineares. 

Nem tudo que é tecnologicamente possível é socialmente desejável ou economicamente viável. O fato é que o futuro não será enfadonho. 

André Tortato Rauen é economista, doutor em política científica e tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Escola Superior do Tribunal de Contas da União (TCU). Também é assessor especial da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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