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11.03.2024 Comunicação

Valorizar a ciência pela contramão

A pesquisa científica é um recurso valioso para a sociedade, mas ela não pode ser impermeável a críticas e à fiscalização, inclusive do jornalismo

Exemplos emblemáticos de má conduta científica, como o Caso Tuskegee, nos Estados Unidos, servem de matéria-prima para o podcast Ciência Suja refletir sobre a importância da ética na ciência e a relevância de uma divulgação científica responsável | Foto: National Archives Atlanta, GA (U.S. government)/Wikicommons

“A ciência afirma isso.” “De acordo com a ciência, devemos fazer aquilo.” Mas que ciência é essa? Embora a pandemia tenha nos colocado frente a frente com o fazer científico, me parece que a maioria das pessoas ainda não conhece a “cozinha da ciência”, ou como ela é feita em termos gerais.

E aí o termo “ciência”, apesar de efetivamente estar mais presente em certos debates, perde seu significado mais valioso para virar sinônimo de “verdade”. O que, paradoxalmente, é um prato cheio para negacionistas e vendedores de soluções mágicas – como mostramos, repetidas vezes, em episódios do podcast Ciência Suja.

Sempre brinco que, quando apresento o Ciência Suja para alguém, eu já logo arremato: “mas a gente gosta de ciência!” Ok, o título do podcast é provocador, mas a ideia sempre foi mostrar o impacto negativo de casos em que a ciência foi deturpada ou mal utilizada, e como ela própria progrediu (ou pode progredir) a partir daí.

Desde a estreia em 2021, fizemos investigações sobre temas como o movimento antivacina, a indústria do tabaco, a eugenia, o negacionismo na pandemia de Covid-19, o excesso de cesáreas no Brasil.

É exatamente por “gostarmos de ciência” que eu e todo o time do Ciência Suja – um alô para Carolina Marcelino, Chloé Pinheiro, Felipe Barbosa, Pedro Belo e para o Instituto Serrapilheira, que acredita na gente – entendemos que ela deve ser retratada como de fato opera.

Ou seja, não como verdades estanques que pipocam da mente de gênios alheios ao mundo, e sim como uma instituição social repleta de práticas que buscam construir, geralmente passo a passo, evidências, teorias e por aí vai.

Como toda instituição social, a ciência está sujeita aos vícios dos seus tempos. Acreditar em uma ciência pura, sem conexões com a sociedade, é simplesmente negar as fartas evidências que suportam o contrário.

A ciência fomenta o conhecimento, mas ela não deveria ser uma torre de Marfim impermeável a críticas e à fiscalização de outros, inclusive do jornalismo.

O racismo científico, por exemplo – assunto de uma recente temporada temática nossa – não é um movimento negacionista, ou algo alheio à ciência. Ele foi criado (e ainda persiste) usando instrumentos científicos, em um ambiente racista.

O tenebroso experimento de Tuskegee, que manteve homens negros sem tratamento para ver “como a sífilis progredia naturalmente”, também. As milhares de amostras de sangue coletadas ilegalmente de indígenas brasileiros – algumas para serem vendidas posteriormente a laboratórios –, idem.

O desenvolvimento de pílulas anticoncepcionais a partir de abusos com mulheres de Porto Rico vai no mesmo sentido. Assim como a linhagem de células HeLa, que são usadas até hoje para diversos fins de pesquisa por sua “imortalidade”, e que foram obtidas sem autorização de uma mulher negra e pobre, que só havia chegado a um centro de saúde para se tratar de um câncer.

Enquanto as pesquisas com suas células decolavam na segunda metade do século XX – auferindo lucro e fama para pesquisadores e empresas –, os familiares da Henrietta Lacks seguiam na pobreza.

Epidemia de opioides

Jogar luz para esses episódios não é invalidar a ciência ou dar munição para negacionistas. Pelo contrário: com contexto e uma proposta de jornalismo que busca caminhos para melhorar o problema em questão, o Ciência Suja tem o objetivo justamente de fomentar, em episódios instigantes e bem roteirizados, a tão desejada criticidade científica.

Por exemplo: a atual epidemia de opioides na América do Norte, que já superou as 700 mil mortes desde seu surgimento na década de 1990, é recheada de pormenores, mas ela tem um evento deflagrador.

Trata-se da alegação de que um potente analgésico à base de opioides, o Oxycontin, gerava dependência apenas em uma minoria ínfima de pessoas, mesmo se usado de forma contínua.

Os representantes da Purdue, a farmacêutica por trás dessa droga, alegavam que o Oxycontin era o analgésico “to start with and to stay with”. Dor nas costas ou de cabeça que não vai embora? Oxycontin nelas.

Essa alegação foi endossada inclusive pela agência regulatória americana, com base em um “estudo” que dizia que apenas 0,03% das pessoas que tomavam Oxycontin desenvolviam dependência. Realmente muito baixo.

Mas… o tal estudo era, na verdade, apenas uma carta ao editor publicada na década de 1980 no The New England Journal of Medicine, e deturpada pela Purdue para maximizar lucros, que superaram os US$ 35 bilhões só com o Oxycontin.

E qual a diferença de uma carta ao editor para uma pesquisa clínica que realmente ajuda a determinar a dependência de uma substância? Muitas, e a partir desse caso nós conseguimos explicar as principais aos nossos ouvintes.

Em última análise, a cobertura crítica da ciência que nós incorporamos no Ciência Suja efetivamente valoriza o método científico.

Com o episódio sobre a epidemia de opioides, esperamos que as pessoas entendam, minimamente e de forma crítica, o processo de desenvolvimento de remédios para, talvez, correrem um menor risco de cair em ladainhas como a da que as vacinas da Covid-19 seriam inseguras, porque são “experimentais” ou foram desenvolvidas de forma muito acelerada.

Ou de que ivermectina ajuda a tratar a dengue (sim, isso está nas redes sociais).

A ciência não é, por si só, igualitária – no Brasil, um levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas, vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aponta que só 2,5% dos pesquisadores de programas de pós-graduação em áreas como Ciências Exatas e da Terra e nas Ciências Biológicas são mulheres pretas, pardas ou indígenas.

Os produtores de ciência também podem propagar o machismo e a misoginia – um trabalho publicado em janeiro na revista Nature aponta que metade das pesquisadoras mulheres passou por assédio sexual na academia.

E eu nem vou entrar no assunto dos periódicos predatórios e da crescente preocupação com adulterações em artigos.

Mas a ciência, apesar disso tudo, é um recurso valioso para a sociedade (talvez um dos mais valiosos, na minha opinião). E é um recurso “vivo”, capaz de melhorar – desde que todos sejamos vigilantes também com ela, e entendamos que a comunicação e o jornalismo integram esse processo.

Theo Ruprecht é jornalista com foco em ciência e saúde e um dos criadores do podcast Ciência Suja. O podcast tem apoio do Instituto Serrapilheira.

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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