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A população negra apresenta os piores desfechos em saúde

Pesquisadora se dedica há 10 anos a comparar dados, avaliar diferenciais em anos potenciais de vida perdidos e identificar iniquidades em saúde no Brasil, sobretudo, sob perspectiva racial.

Dra. Ionara Magalhães de Souza, doutora em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) com doutorado sanduíche na University of the Western Cape (Cidade do Cabo, África do Sul) Ionara Magalhães de Souza: "precisamos investir em estudos sobre branquitude e ações afirmativas na saúde" | Foto: Arquivo Pessoal

A pesquisadora Ionara Magalhães de Souza, doutora em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) com doutorado sanduíche na University of the Western Cape (Cidade do Cabo, África do Sul), se define como “resultado de um arcabouço de adversidades” – e, ao mesmo tempo, como fruto de políticas públicas e oportunidades de mobilidade social.

Coordenadora de políticas afirmativas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a pedagoga e fisioterapeuta explica, nesta entrevista ao Science Arena, que seu interesse por pesquisas em saúde de grupos populacionais específicos nasceu de pura e simples indignação. Ou do “reconhecimento de que estamos envolvidas/os em um sistema eugênico, antinegro, anti-indígena, cis-heteronormativo”.

Seus estudos, amparados no campo da epidemiologia social, envolvem a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, “ignorada na quase totalidade dos municípios brasileiros”.

Science Arena – Como surgiu seu interesse em trabalhar com temas de desigualdade dentro da saúde?

Ionara Magalhães – O interesse em trabalhar com desigualdades em saúde parte de duas dimensões: uma, dado o processo formativo – educação básica, graduações, pós-graduações, participação em projetos de pesquisa, extensão, comitês, observatórios – e o consequente desenvolvimento de uma consciência ancestral, política e social, compreendo-me como resultado de um arcabouço de adversidades e fruto das políticas públicas e oportunidades que possibilitam mobilidade social. 

A outra dimensão parte da indignação, do reconhecimento de que estamos envolvidas/os em um sistema eugênico, antinegro, anti-indígena, cis-heteronormativo, antidemocrático, antidireitos humanos. Em outras palavras, sob vigência de um sistema classista, racista, capacitista, etarista e patriarcal que fundamenta esse país oligárquico, hierárquico, autoritário, meritocrático, patrimonialista e violento.

Daí a necessidade de enfrentamento das iniquidades e de disputa histórica. A população negra e outras populações vulnerabilizadas ocupam os estratos mais pobres, apresentam os piores indicadores sociais e, consequentemente, os piores desfechos em saúde.

Assim, atrelada à dificuldade de acesso à informação, pior qualidade da assistência à saúde, pior prognóstico e piores condições de tratamento e reabilitação, ampliam-se as probabilidades de adoecimento, multimorbidade e morte.

Essa compreensão é basilar no campo das desigualdades em saúde, e todas essas questões requerem intervenção.

Quais suas principais contribuições a partir dos estudos que desenvolve na área de epidemiologia das desigualdades em saúde?

Sou professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e atuo como pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades em Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) há dez anos. Lá, desenvolvemos estudos destinados a comparar dados, avaliar diferenciais em anos potenciais de vida perdidos e identificar iniquidades em saúde no Brasil, sobretudo sob a perspectiva racial.

Esses estudos se amparam na epidemiologia social, envolvem a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que é transversal, contra-hegemônica e ignorada na quase totalidade dos municípios brasileiros. Também abarcam a análise do preenchimento da variável raça/cor e outros dados oriundos dos sistemas de informação em saúde e versam sobre a atenção à saúde da população negra, análise de indicadores, perfis de morbimortalidade, qualidade da assistência e a intersecção do racismo sobre as práticas de cuidado. 

Qual sua avaliação das políticas afirmativas voltadas a tornar a produção científica “menos branca” e mais inclusiva no Brasil?

Temos algumas produções científicas sobre políticas afirmativas, mas poucas iniciativas voltadas para as políticas afirmativas no campo da produção científica. Qual o alcance das políticas afirmativas na produção científica? Não existe neutralidade científica na ciência.

A ciência é branca e o racismo científico teve papel preponderante no desenvolvimento de uma sociedade patologizada, pautada na eugenia e na produção sistêmica de atrocidades na medida em que as teorias que remontam ao século XVI enalteciam a superioridade genética, moral, estética, intelectual e cultural de brancos e defendiam a propensão genética de determinadas raças à criminalidade, à marginalidade, à inferioridade, à violência, à decadência civil.

A ciência institucionalizou práticas racistas. O ‘epistemicídio’ é uma produção histórica e social. 

Inversamente, compete ao campo da produção científica a responsabilidade moral e o compromisso político e social de provocar transformações, mobilizar forças políticas e promover equidade.

Desigualdades persistem na natureza das produções científicas, no perfil de pesquisadores/as (quem são, quem pesquisa, quem é pesquisado), nas temáticas quase sempre negligenciadas, pouco valorizadas, nos artigos aceitos para publicação, nos projetos de pesquisa contemplados pelas agências de fomento.

A produção científica impulsiona a promoção de políticas públicas. É necessário fomentar pesquisas a partir dos indicadores de saúde, pautar iniquidades  em saúde e interseccionalidades nas agendas em pesquisa, valorizar saberes populares, destinar recursos para o desenvolvimento de ações afirmativas na produção científica.

A falta de políticas afirmativas impacta o acesso à pós-graduação e, consequentemente, a contribuição científica. Ações afirmativas podem minimizar as desigualdades de oportunidades de acesso, potencializar o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Inquestionavelmente, o enfrentamento das iniquidades perpassa a adoção de políticas afirmativas na produção científica.

Torná-la menos branca e, consequentemente, menos excludente implica compreender os benefícios de uma ciência diversificada, decolonial. A redução das desigualdades sociais impacta a produção científica do Brasil que, por sua vez, incide favoravelmente sobre as populações vulnerabilizadas. 

Como você avalia os esforços para ampliar a equidade na saúde e na pesquisa em saúde nos últimos anos? Quais os avanços e os retrocessos?

Não temos tradição de refletir sobre as desigualdades em saúde, assim como não temos um sistema de enfrentamento das iniquidades no Brasil. As ações são fragmentadas, individuais ou conduzidas por alguns segmentos sociais.

A equidade na saúde e na pesquisa em saúde nos últimos anos é relativamente tímida.

O enfrentamento das iniquidades em saúde requer o desenvolvimento de consciência histórica e política e o reconhecimento do racismo, classismo, sexismo e capacitismo como vetores de adoecimento e morte de determinadas populações. 

Não universalizamos os direitos constitucionais. São necessárias reformas política, sanitária e administrativa; ampliar as redes afetivas, teóricas e políticas e preservar o senso de coletividade e de justiça; fortalecer as identidades e o controle social.

Precisamos investir em proteção e bem-estar social, as instituições precisam ser espaços seguros para as pessoas em situação de vulnerabilidade.

Qual a responsabilidade do Estado nisso?

O Estado tem a responsabilidade de promover a igualdade de direitos e oportunidades, implementar ações afirmativas nos setores públicos e privados, investir no Sistema Único de Saúde (SUS); implementar a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, pois as políticas universalistas são insuficientes.

Cabe a ele também financiar, monitorar e avaliar as ações voltadas para a saúde das populações marginalizadas; qualificar o preenchimento do campo raça/cor em todos os sistemas de informação; desenvolver pesquisas sobre morbimortalidade envolvendo os fatores de risco e proteção e a qualidade da atenção à saúde da população negra.

O Estado também deve investir em educação para as relações étnico-raciais; alterar a cultura institucional de modo a termos gestores, profissionais, trabalhadoras/es e usuárias/os pró-equidade. E, assim, construir um projeto de sociedade democrático e equânime.

Nós herdamos e reproduzimos um sistema-mundo que se sustenta às custas da humanidade e negação de direitos do “não-branco”, e isso justifica a resistência de segmentos conservadores à adoção de políticas específicas e reparativas, leiam-se ações afirmativas.

Precisamos investir em estudos sobre branquitude e ações afirmativas na saúde – duas grandes chaves para entendermos as iniquidades em saúde e promovermos as estratégias de reparação social.

Avançamos em produções científicas e na luta pela equidade, todavia nos encontramos num contexto de destruição das políticas sociais. A reconstrução do país só se dará mediante bases democráticas, justas e inclusivas e adoção de novos parâmetros epistemológicos.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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