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19.04.2024 Biologia

Regina Pekelmann: na trilha da melatonina 

Professora emérita do Instituto de Biociências da USP fala sobre a relação entre o eixo imune-pineal e a produção do hormônio que sincroniza os ritmos biológicos

Regina Pekelmann Markus A pesquisadora Regina Pekelmann Markus é membro da Academia de Ciência do Estado de São Paulo, Academia Brasileira de Ciências e Academia de Ciências da América Latina | Foto: Midiateca IEA/USP 

A professora emérita do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) Regina Pekelmann Markus tem uma carreira de destaque internacional baseada na proposição de fatos novos em ciência básica.

Com pesquisas na área de cronofarmacologia, criou o conceito do eixo imune-pineal ao detectar como a melatonina circulante regula a migração de células do sangue para os tecidos. Essa constatação trouxe mudanças importantes para a ciência, aplicadas em áreas que vão desde transplantes de medula e tratamentos de doenças neurodegenerativas a estratégias inovadoras para medir o grau de malignidade de alguns tipos de câncer.  

Suas pesquisas mostraram, por exemplo, que a liberação de células-tronco primordiais é menor durante a noite, devido à produção de melatonina nesse período. Também mostram que batidas, mordidas de mosquitos, bactérias e outras causas de danos locais suspendem a produção noturna de melatonina, permitindo a migração de células de defesa para o local lesado. 

Membro da Academia de Ciência do Estado de São Paulo, Academia Brasileira de Ciências e Academia de Ciências da América Latina, Markus recebeu várias homenagens e prêmios. Nos últimos anos, foi agraciada com a Medalha da Ordem do Mérito Científico e o Prêmio Carolina Bori da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).  

Seu papel fundamental para o fortalecimento de gênero também foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) no prêmio Raise and Raise Others. Atuante em sociedades científicas, Markus passou pela Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental, SBPC e International Union for Pharmacology, entre outras.

Também é vice-presidente do grupo brasileiro de amigos do Instituto Weizmann de Ciências, uma das principais instituições de pesquisa multidisciplinar do mundo nas ciências naturais e exatas. Coordena um exame nacional que seleciona brasileiros para participarem do Curso de Verão em Israel. 

Markus se formou em ciências biomédicas e fez doutorado em farmacologia pela Escola Paulista de Medicina (UPM) uma das unidades da atual Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde foi professora por 15 anos antes de migrar para a USP.

“A Regina filha, irmã, esposa, mãe e avó segue pari passu a Regina profissional”, reflete. “Casei na semana seguinte à que me graduei. Tive meu segundo filho três meses após defender o doutorado”, conta. “Ser professora e mentora é o prazer do dia a dia. Estar em sala de aula, ministrar conferências ou sentar em volta de uma mesa com a turminha é sempre uma oportunidade de trocar conhecimento e informações.”  

Ao Science Arena, Markus falou sobre a carreira. “Estudar e questionar sempre foram a minha marca registrada, desde menina. Olhar através do tempo é uma forma de saber o quanto ainda tem que ser feito.” 

Science Arena – O que mais te fascina na melatonina, hormônio que sincroniza os ritmos biológicos?

Regina Pekelmann Markus – É uma molécula fascinante essa pequena fada do escuro. Tão fascinante quanto uma noite estrelada. É o hormônio do escuro, produzida pela quase totalidade dos seres vivos à noite. Nos animais de hábito noturno, como os ratos e camundongos, prepara o organismo para a atividade, e nos de hábito diurno, como os humanos, prepara para o sono.

A melatonina também é produzida por células de defesa, em geral ao longo das 24 horas do dia, facilitando a remoção de detritos celulares e impedindo que sejam desencadeadas fortes respostas inflamatórias. 

E é essa ação que está relacionada à sua importante descoberta do conceito do eixo imuno-pineal? 

Nosso grupo de pesquisa mostrou que a melatonina produzida pela glândula pineal à noite impede a migração de células de defesa do sangue para tecidos periféricos, tanto em animais de hábito diurno quanto noturno. Mas quando os organismos são atacados por agentes patogênicos, como bactérias e fungos, ou por moléculas endógenas que indicam dano ou perigo, a produção noturnal de melatonina cai, o que faz com que as células de defesa possam chegar aos locais necessários e destruir os agentes patogênicos. Mostramos que agentes patogênicos, e células danificadas ou mortas, suspendem a produção noturna de melatonina pela glândula pineal. Isso permite que a defesa seja igual de dia e de noite. 

E no caso da produção local de melatonina? 

Considerando que este processo tem que ser muito bem regulado, e não pode ser mantido por longos períodos para evitar lesões importantes, avaliamos a possibilidade de as células de defesa produzirem melatonina localmente. A resposta foi positiva.

Os macrófagos que chegaram ao tecido para limpar os restos de microrganismos mortos e as células danificadas passam a produzir melatonina, que é um fator necessário para que a defesa passe do ataque ao agressor para a reconstituição da região atacada.

Assim, a melatonina produzida localmente, além de impedir a entrada de outras células, ativa as propriedades pelas quais os macrófagos promovem a limpeza da área. Foi assim definido o eixo imune-pineal, apresentado pela primeira vez em 2001 e que atualmente é consagrado na literatura. 

Quais os desdobramentos nos anos posteriores? 

Mostrou-se que muitas moléculas do próprio organismo podem ativar o eixo imune-pineal. Entre elas podemos destacar o peptídeo beta amiloide (um marcador da doença de Alzheimer), o fator de necrose tumoral (TNF), uma citocina pró-inflamatória de múltiplas ações, entre outras.

O importante foi mostrar que a montagem de uma resposta de defesa à noite depende da suspensão da produção de melatonina pela pineal e a duração desta resposta da melatonina local. A volta da produção da melatonina noturna é feita pela liberação de cortisol, um importante anti-inflamatório. Quando isso dá errado, surgem os processos de inflamações agudas e de facilitação de doenças com base inflamatória, como artrites e doenças neurodegenerativas. 

Também foi possível estabelecer relações com a mastite? 

A mastite foi o nosso modelo inflamatório agudo em humanos. Quando o neonato suga, ocorre uma lesão em volta do mamilo. A amamentação fica dolorosa e o colostro, o leite produzido nos primeiros dias após o parto, pode estar misturado com sangue. O colostro reflete a concentração de melatonina no sangue, e o ritmo diário de melatonina no colostro não acontece em mães com mastite. Há apenas um basal diurno. Esta foi a primeira comprovação que o eixo imune-pineal é ativado em humanos. Hoje, há muitos autores ao redor do mundo que estudam este mecanismo. 

Em relação à Covid-19, vocês observaram que a melatonina produzida pelo pulmão atua como uma proteção contra o vírus? 

Tínhamos publicado a possibilidade de usar um índex gênico (MEL-Index) para classificar pacientes com glioma que produziam ou não melatonina na zona do tumor. Avaliamos a possibilidade deste índice sugerir que a melatonina produzida localmente poderia estar bloqueando a entrada do vírus. Bingo! O resultado foi positivo. Posteriormente caracterizamos quais seriam as moléculas envolvidas neste mecanismo. As bases estavam criadas. 

E na sequência? 

Tivemos enorme dificuldade de seguir em frente, porque os laboratórios e possíveis colaboradores estavam interessados em usar melatonina como um medicamento, e, como prevíamos, este não era um caminho viável.

Agora começaremos a enveredar por aleias para entender por que alguns sujeitos apresentam o vírus, mas não desenvolvem anticorpos. Não é por falha de seu sistema imunológico, ao contrário! É por uma excelente defesa primária que ocorre sem o sistema imunológico tomar conhecimento. 

Por que usar a melatonina como um medicamento não é um caminho viável? 

A ideia é que a melatonina poderia ser um coadjuvante da resposta imunológica e que poderia atuar como um antioxidante. Mas todos estes efeitos requerem doses altas, que silenciam e retiram das membranas receptores de melatonina – que respondem a concentrações 10 mil ou 100 mil vezes menores às concentrações produzidas pelas células do pulmão.

A crítica que faço à melatonina também é aplicada a muitos medicamentos que são usados em concentrações que podem induzir os famosos efeitos colaterais.

Atualmente, os estudos com biologia de sistemas que levam em consideração conversas cruzadas entre várias vias de sinalização poderão aumentar a possibilidade de uma terapia focada no paciente, e não em médias populacionais. 

Para onde tem direcionado suas pesquisas agora? 

Entender o que é o saudável, e quais são as reações naturais para impedir que doenças se manifestem de forma agressiva, é a nossa trilha. Agentes melatonérgicos endógenos, em conjunto com seu principal precursor, a serotonina, e os reguladores adrenalina e cortisol podem alterar a forma como pacientes são classificados em casos de câncer, doenças autoimunes, inflamatórias e doenças neurodegenerativas. Estamos agora empenhados em ampliar a base de conhecimento e promover a transferência desse conhecimento para o uso diagnóstico. 

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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