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22.02.2024 Imunologia

As armadilhas do sistema imunológico

Fernando de Queiroz Cunha, da USP, estuda o papel das armadilhas extracelulares de neutrófilos em sepses, arboviroses e Covid-19

Fernando de Queiroz Cunha, da USP de Ribeirão Preto (SP): estudo da infecção generalizada ajudou a entender formas mais graves da Covid-19 | Foto: Arquivo Pessoal

O Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID), coordenado pelo imunofarmacologista Fernando de Queiroz Cunha, professor titular de farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), realiza a investigação integrativa e translacional voltada para a identificação e validação de novas rotas biológicas envolvidas na indução e na resolução da inflamação. O CRID é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Em sua produção científica, Cunha reúne trabalhos sobre sepse (infecção generalizada) que, durante a pandemia, se mostraram importantes para entender processos inflamatórios em formas graves de Covid.

Em entrevista ao Science Arena, o pesquisador, que é referência mundial na área de imunometabolismo, aborda temas que vão das arboviroses ao câncer, tendo como pano de fundo suas descobertas relacionadas às armadilhas extracelulares de neutrófilos (NETs), que podem lesionar, mas também proteger o sistema imunológico.

Science Arena – Quais são as doenças inflamatórias mais prevalentes hoje na população brasileira? 

Fernando de Queiroz Cunha – Antes do conhecimento que dispomos hoje, as doenças inflamatórias eram caracterizadas quando se observava claramente a presença dos cinco sinais cardinais, que são edema, calor, rubor, dor e perda de função, sendo a mais prevalente a artrite reumatoide. À medida que a investigação evoluiu, vemos que quase todas as doenças têm um componente inflamatório, com diferentes origens.

Pode ser causada por infecções e a maior preocupação é com a sepse, que é sistêmica. Temos, por exemplo, a leishmaniose, que é uma doença causada por infecção local, com intensa resposta inflamatória. Há também as doenças cuja origem é o sistema autoimune. E podemos listar outras, como a esclerose múltipla, doenças do intestino como colite e Doença de Chron.

Além disso, passamos a incluir as doenças metabólicas também como inflamatórias, assim como as cardiovasculares. Outro exemplo é o câncer. Hoje, nós falamos em microambiente tumoral e que ele é inflamatório, um conhecimento que resulta em novas drogas que visam restabelecer os mecanismos que possibilitam ao organismo combater as células tumorais, como é o caso da imunoterapia.

Quais são os principais avanços obtidos pelo seu grupo com o Centro para Pesquisa de Doenças Inflamatórias (CRID)?

Quando começamos, tínhamos um enorme entendimento do mecanismo de dor, sendo os primeiros a demonstrar como se dava a conversa entre o agente causador da inflamação e a sensibilização dos neurônios sensitivos, agregando neste “Lego” a palavra citocina.

Ela já era conhecida, mas mostrando que o link entre o estímulo inflamatório e a sensibilização dos neurônios ocorria por conta da presença de citocinas.

Nós temos especialistas em dor inflamatória e neuropática e, às vezes, essas dores têm mecanismos semelhantes. Estamos estudando esses mecanismos, procurando entender como ocorre a sensibilização desses neurônios.

Por conta disso, somos um dos grupos mais bem preparados para discutir e desenvolver novos medicamentos.  Nos últimos anos, nós evoluímos dos mecanismos de migração para o entendimento de quais são os mecanismos de lesões e hoje nós estamos focados em estudar o papel das NETs (armadilhas extracelulares de neutrófilos, em português).

O que são armadilhas extracelulares de neutrófilos (NETs) e o que os estudos de seu grupo, incluindo a revisão publicada na Trends in Pharmacological Sciences, apontam sobre o papel das NETs em causar danos ao sistema imunológico?

A ideia partiu dos leucócitos, especificamente o neutrófilo (célula de defesa do organismo), que é o principal deles em causar lesão na fase aguda da inflamação. Eles são a primeira linha de reconhecimento e defesa contra agentes infecciosos no tecido, como as bactérias, e são eficazes em resposta imune pró-inflamatória. O neutrófilo desenrola, descondensa e gruda no DNA uma quantidade de enzimas citotóxicas que ele tem no citoplasma.

É como se ele jogasse uma rede, assim como os pescadores usam para prender os peixes. Na prática, os neutrófilos liberam essas redes no espaço extra inflamatório, prendem as bactérias – porque é uma rede de fibras de DNA – e, então, os microrganismos, ao terem contato com as citocinas, morrem.

O grande desafio é que os mesmos mediadores que têm um papel protetor intenso, como os radicais livres ou as NETs, também são causadores de lesões.

Ficamos assim em uma Escolha de Sofia: se inibe esses mediadores, você evita a lesão numa doença inflamatória, mas ele permite que o organismo fique mais sensível ou mais suscetível a infecções, porque isso reduz os mecanismos de defesa.

Nós estamos trabalhando hoje justamente no sentido de entender os mecanismos pelas quais as NETs estão combatendo os microrganismos e os mecanismos pelos quais as NETs estão lesando os tecidos. O objetivo é encontrar formas de modular melhor o metabolismo da célula e, consequentemente, mudar o seu perfil de lesivo para protetor do organismo.

Coleta de amostras para o diagnóstico de vírus Sars-CoV-2 de todas as pessoas que residiam no alojamento estudantil da USP (CRUSP) durante a pandemia de Covid-19 | Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O conhecimento adquirido sobre a sepse contribuiu, de alguma forma, para o entendimento dos processos inflamatórios da Covid-19?

Quando surgiu a pandemia [de Covid-19], reunimos nosso conhecimento sobre o papel de NETs em artrite reumatoide e logo formamos um grupo para estudar a associação com a doença. Com o CRID, publicamos mais de 100 artigos, muitos em revistas de alto impacto, como um trabalho no The Journal of Experimental Medicine que foi considerado por dois anos o artigo mais lido da revista.

Com o trabalho “SARS-CoV-2–triggered neutrophil extracellular traps mediate COVID-19 pathology“, mostramos que o mecanismo NET está envolvido na resposta inflamatória exacerbada que acomete pacientes com a forma grave da Covid-19.

Com isso, abrimos caminhos para novas abordagens terapêuticas, entre elas o reposicionamento de um fármaco hoje usado contra fibrose cística. Hoje, nós estamos trabalhando também com um tratamento para inibidores da enzima PAD-4, que bloqueia a produção de NET.

Em qual patamar o país está no cenário global de pesquisas sobre imunometabolismo?

Temos gargalos profundos. Quando vamos fazer um medicamento, por exemplo, o que você precisa? Primeiro, ter cientistas que achem os potenciais alvos. Para isso, temos pessoas capacitadas, principalmente em vacina. Há profissionais no país que estudam a interação de parasitas, bactérias, fungos e vírus com o organismo.

Com medicamento, precisamos primeiro de uma molécula. Fazê-la é como a montagem de um Lego, que necessita de vários intermediários químicos. Aí, reagimos uma molécula com outra, até construir aquela molécula que vai bloquear aquele determinado alvo, um receptor, por exemplo.

Quando a molécula reage bem, sintetizamos. Vêm em seguida os testes em modelos animais. Quando funciona, vemos que essa molécula se torna promissora. Aí, vemos se ela é tóxica ou não. Testamos no camundongo ou em outra espécie. Ao passar por todas essas etapas, testamos no humano.

Nesse processo todo, o maior gargalo no Brasil está em quem vai produzir essas moléculas em grande quantidade para serem testadas.

Quais são as principais semelhanças e diferenças quanto ao processo inflamatório das arboviroses mais comuns: dengue, zika e chikungunya? 

Embora tenham em comum o fato de serem arboviroses, as lesões e sintomas são diferentes, assim como a intensidade da inflamação. No caso da dengue, nós não conseguimos mostrar que o vírus estimula a produção de NET no neutrófilo, mas quando pegamos o sangue, o plasma de camundongos no mesmo paciente, há sim um aumento, o que nos induz a pensar que esse mecanismo de liberação seja indireto.

Quando observamos as três doenças, vemos que se diferem também nas preferências. A zika tem uma predileção pelo sistema nervoso central. O chikungunya causa muito mais lesões articulares, ou seja, está mais próximo do que se observa, por exemplo, na artrite reumatoide. Já quem teve zika, não tem tanta dor articular. A dengue, por sua vez, causa um mecanismo mais sistêmico.

Há avanços na terapêutica de arboviroses?

Os grandes avanços estão acontecendo na área de vacinas, embora um conjunto significativo de pacientes não respondam aos imunizantes por conta de outras infecções ou alterações genéticas, por exemplo.

Então, sempre que formos falar em qualquer doença, nós temos que ter, quando possível, vacinas e um arsenal terapêutico. Devemos também ter atenção com a epidemiologia, o que inclui o controle dos vetores. Infelizmente, não há ainda de fato um tratamento específico contra os vírus das arboviroses, mas temos vacinas sendo testadas contra dengue, por exemplo.

Quais são os próximos passos do Centro para Pesquisa de Doenças Inflamatórias (CRID)?

Estamos completando 11 anos e esperamos poder nos inscrever em novos editais da Fapesp. Queremos manter esse centro funcionando, porque será importante darmos continuidade às nossas contribuições. Em uma década, publicamos mais de mil artigos, sendo mais de 30% em revistas de alto impacto.

Formamos mais de 500 pós-graduandos, entre doutores, mestres e pós-doutores. Hoje, eles estão espalhados pelo mundo e nosso centro de pesquisa é reconhecido internacionalmente. Queremos fortalecer a linha de produção de novos medicamentos, assim como colaborar com outros grupos de pesquisa, com alvos aqui descobertos, frutos de nossos modelos experimentais. 

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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