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Fronteiras tênues entre saúde e geografia

Helen Gurgel, da UnB, fala sobre os desafios da área do conhecimento que busca ampliar o diálogo entre geógrafos e profissionais da saúde

A geografia da saúde promove o diálogo entre os dois campos do conhecimento, a fim de identificar fatores ambientais que impactam diferentes populações | Imagem: Shutterstock

A geógrafa Helen da Costa Gurgel é coordenadora do Laboratório de Geografia, Ambiente e Saúde (Lagas) da Universidade de Brasília (UnB), criado para desenvolver pesquisas no campo da geografia da saúde, área do conhecimento que abarca a dinâmica entre medicina e ambiente.

Em entrevista ao Science Arena, Gurgel explica o que é esse campo de pesquisa e como a abordagem multidisciplinar é fundamental para estudos tão diversos, que abrangem desde pandemias até a saúde mental.

“A geografia é uma ciência que tem facilidade em dialogar com várias áreas, ajudando a sistematizar o conhecimento existente para apoiar as ações do setor de saúde.”

Science Arena – O que caracteriza a geografia da saúde como campo de estudo?

Helen Gurgel – Prefiro falar em geografia e saúde, por ser uma troca, um diálogo entre duas ciências muito bem conhecidas e com base secular. Para mim, é a capacidade que a geografia tem de ajudar no diálogo das situações de saúde, principalmente de saúde coletiva. Não trabalhamos com saúde do indivíduo porque não é a nossa linha. 

Não vamos receitar remédios ou saber exatamente a genética que leva a certas situações. O que temos é a preocupação com o coletivo. Tudo está inserido em um determinado ambiente, então nossa pergunta é: como esse ambiente se comporta? Quais são as características dele que podem impactar a saúde? 

A geografia da saúde tem esse papel de promover o diálogo entre essas áreas, porque o território é onde as coisas acontecem: onde as pessoas vivem, trabalham, se divertem, adoecem e se recuperam; é muito importante para compreender a dinâmica de certas doenças e auxiliar na gestão da saúde.

Como se define esse território?

A visão do território é, muitas vezes, meramente geométrica, como o limite de um bairro ou de um município. Mas o território é muito mais do que isso. Há territórios sobre territórios, sem necessariamente apresentar uma divisão tão rígida.

Compreender quais são as dinâmicas ambientais e socioeconômicas que ocorrem em determinados territórios representa um apoio para o pessoal da área da saúde, pois possibilita observar como a qualidade do ambiente e as características socioculturais têm impacto sobre a saúde.

A gente sempre brinca que, em vez de saúde, a gente acaba estudando doenças – mas o objetivo da geografia da saúde é justamente tentar identificar e compreender por que certos ambientes propiciam vidas mais saudáveis, e o que leva um ambiente a ter mais impacto na saúde da sua população do que outros. 

Muitas vezes a gente se surpreende, porque vemos ambientes que parecem propícios a serem ruins para a saúde – quando, muitas vezes, eles são bons. Depende do tipo de saúde que você busca. 

Isso acontece quando pensamos em saúde mental ou em alguns outros tipos de saúde ligados às questões ambientais, como qualidade do ar e do solo. 

Como assim?

Se eu falar, por exemplo, sobre uma população ribeirinha da Amazônia, alguns vão achar que é uma população extremamente vulnerável, com muitos problemas de saúde, mas isso não necessariamente se confirma. Muitas vezes ela é mais saudável do que aquela que vive em centro urbano, com fácil acesso a tudo o que a saúde diz que é mais importante. 

Quando colocamos lado a lado, algumas vezes a saúde do ribeirinho é melhor. Nesse diálogo, ajudamos a mexer com certos tabus e preconceitos. Por isso, defino a geografia da saúde como uma ciência que ajuda o diálogo entre os diversos tipos de conhecimento. 

Para a geógrafa Helen da Costa Gurgel, da UnB, é necessário estudar o impacto que o ambiente onde as populações vivem têm na saúde coletiva | Foto: Arquivo pessoal

Como essa área de pesquisa está estabelecida no Brasil? Muitas pessoas conheceram a área durante a pandemia de Covid-19, não?

Ela começou a ganhar bastante força durante a década de 1990, com a formação ainda bem segmentada de alguns grupos. Para ser mais precisa, foi a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento [conhecida como Eco-92 ou Cúpula da Terra], realizada em 1992, no Rio de Janeiro, quando a questão ambiental ganhou mais destaque. 

Atualmente, no Brasil, há uma comunidade importante de geógrafos da saúde e temos visto a evolução dessa temática dentro da geografia e na relação com outras áreas, principalmente quando falamos de saúde coletiva. A área ficou em evidência com a pandemia de Covid-19. Muitos geógrafos falaram à imprensa naquele momento.

Como a área contribuiu para o enfrentamento da pandemia?

De forma bastante intensa. Imediatamente foi formada uma força-tarefa de geógrafos da saúde, que começou a discutir o papel da mobilidade e da localização geográfica das cidades – lugares com aeroportos internacionais, por exemplo, onde ocorreram os primeiros casos no Brasil. 

Fizemos muito mapeamento para mostrar o tempo e o caminho que a pandemia iria levar até chegar nas cidades mais afastadas dos centros urbanos, no interior do país. Também fizemos vários trabalhos para analisar o impacto da política no controle da doença, mostrando que, realmente, ela tinha muita importância na dinâmica da pandemia. 

Publicamos um estudo analisando como algumas cidades, mesmo aquelas mais bem estruturadas em relação à saúde (mas que escolheram um tipo de política) foram mais impactadas na pandemia do que outras menos estruturadas. 

Era sinal de que a escolha de certos tipos de ação política impacta a dinâmica da Covid-19. Mostramos que muitos problemas no enfrentamento da pandemia não foram apenas resultado da falta de infraestrutura, mas também de uma fragilidade nas ações de combate à doença.

Este artigo foi feito em parceria entre especialistas de geografia e epidemiologia, e é um bom exemplo de como a situação social, econômica e política pode impactar na dinâmica de uma enfermidade. 

E o que a geografia da saúde pode dizer a respeito de  possíveis novas pandemias e epidemias?

Definitivamente podemos dizer que a geografia da saúde é uma ferramenta que pode contribuir muito quando se fala em pandemias e epidemias. Por exemplo, quando se fala da Amazônia, e como o seu desmatamento pode fazer emergir doenças que estão guardadas na biodiversidade local, sendo transmitidas para humanos, com grande potencial de se transformarem em pandemias. 

Isso está dentro da linha do One Health da OMS, a chamada ‘saúde única’. Temos trabalhado amplamente em parceria nesta linha, lançando luz sobre essa maneira de olhar a saúde de forma integrada, como um todo, considerando a dinâmica entre saúde do ambiente, saúde animal e saúde humana.

Por falar em ambiente, como a questão climática entra nesta equação?

Em parceria com pesquisadores da meteorologia, temos desenvolvido um estudo sobre ondas de calor, algo que tem assolado a Europa e, mais recentemente, o Brasil.

O impacto disso é crescente e tem relação direta com as mudanças climáticas. 

Falar que Manaus (AM) e Belém (PA) sofrem com o calor não assusta muito as pessoas, mas mostramos que a região Norte do Brasil tem passado cada vez mais por longos períodos de calor extremo, afetando bastante a população.

Na última década foram mais de 45 mil mortes associadas a ondas de calor no Brasil.

Estamos fazendo esse levantamento para ver quais são as principais doenças que as ondas de calor impactam no Brasil e quais são os períodos em que elas tendem a ocorrer em cada região, para criar protocolos de monitoramento específicos. 

Não há como parar uma onda de calor, mas podemos nos adaptar a ela, entender o que precisa ser feito quando o calor extremo chega e, assim, diminuir o impacto na saúde da população.

Poderia mencionar um exemplo do que pode ser feito?

Criar sistemas de alerta sobre o quão crítica será uma onda de calor, em especial para as pessoas mais vulneráveis, é um exemplo. Isso porque eventos extremos de calor, além de afetar idosos, crianças e pessoas com comorbidades, também impacta consideravelmente mulheres grávidas e altera os índices de prematuridade. 

Além disso, pouco se fala da influência de eventos climáticos extremos nas doenças mentais. O calor pode fazer com que pessoas com determinados tipos de transtorno mental fiquem mais fragilizadas, e isso pode desencadear crises. 

Nesse sentido, temos lançado luz sobre populações vulnerabilizadas e que não são tão reconhecidas [pelos tomadores de decisão, por exemplo], ajudando na identificação de ações que podem ser realizadas a fim de minimizar essas situações.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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