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13.03.2024 Comunicação

Kananda Eller: divulgar ciência para transformar o mundo

Para química e influencer, divulgação científica deve fazer parte da construção de uma sociedade mais justa e igualitária

Com milhares de seguidores nas mídias sociais, Kananda Eller usa seus canais para combater o racismo e outros preconceitos na ciência | Imagem: Reprodução/Instagram

Somando mais de 200 mil seguidores só no perfil Deusa Cientista (@deusacientista) no Instagram, a baiana Kananda Eller, de 27 anos, deixa claro que seu objetivo na internet é difundir o conhecimento científico produzido por pessoas negras e ampliar o debate sobre questões de gênero no meio acadêmico.

Soteropolitana graduada em química pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Eller atualmente faz o mestrado em ensino de ciências ambientais na Universidade de São Paulo (USP) e divide o tempo entre desenvolver sua pesquisa e apresentar a série Ciência, substantivo feminino, que estreou em fevereiro no canal GNT (com conteúdo também disponível na plataforma Globoplay).

O programa apresenta as contribuições fundamentais de mulheres brasileiras à ciência e, nesta primeira temporada, dedicou cinco episódios para contar a história de pesquisadoras de renome, entre elas Johanna Döbereiner (1924-2000), Elisa Frota-Pessoa (1921-2018) e Bertha Lutz (1894-1976).

De acordo com Eller, a principal finalidade da série é difundir a cultura científica para novos públicos, tendo como ponto de partida a ciência produzida por mulheres.

Em entrevista ao Science Arena, Kananda Eller fala sobre os desafios de seguir carreira na divulgação científica, tendo como pano de fundo o debate sobre o impacto das desigualdades sociais, raciais e de gênero no ensino e na pesquisa.

Science Arena – Por que seu perfil no Instagram se chama Deusa Cientista?

Kananda Eller – A escolha do nome Deusa Cientista vem do candomblé – que entende os deuses como “seres humanos normais que habitaram a Terra.” Em meu canal, procuro produzir conteúdo que combate o racismo e destaca as descobertas e os avanços criados por pessoas negras ao longo da história, e que muitas vezes tiveram seus grandes feitos apagados e silenciados.

Você afirma que a divulgação científica deve contribuir para que a ciência seja capaz de transformar a realidade social. Como isso pode acontecer?

Acredito nisso porque a ciência é uma ferramenta social que busca se aproximar e descrever a realidade – e não tem como fazer isso sem estar próximo a ela. É muito importante que esta realidade também esteja próxima do que a ciência produz, ou seja, é uma via de mão dupla.

A divulgação científica é uma área muito generosa da ciência, mas ainda muito julgada pela própria academia, que se coloca em um pedestal de distanciamento da população.

No entanto, quando você torna o conhecimento acessível, permitindo que as pessoas possam entender o que acontece na ciência, você também tem a oportunidade de enriquecer a própria produção científico.

Tem algum exemplo?

Posso falar do meu perfil, que hoje é um lugar de muito incentivo para a nova geração e até para uma geração mais velha que não teve oportunidade de acessar conteúdo científico.

Por meio dele, posso levar conhecimento sobre diversos assuntos – da química à microbiologia – e apresentar possibilidades de uma carreira científica para quem nunca pensou em seguir essa trajetória profissional.

No meu perfil, faço questão de fazer isso com foco em pessoas negras e mulheres, que são grupos historicamente excluídos do ensino superior, da vida acadêmica. Até hoje vemos o retrato disso nas universidades.

Neste sentido, a divulgação científica tem o papel fundamental de incentivar pessoas, trazer autoestima, mostrar como é atuar na ciência. Até porque as pessoas ainda têm uma visão um pouco irreal do que é produzir conhecimento científico.

Você percebe racismo na forma como a ciência é divulgada?

Sim, porque ao longo da história todas as civilizações, todas as sociedades, todos os povos produziam pensamentos e conhecimento. No entanto, escolas e universidades do Brasil e do mundo sempre deram ênfase no estudo da ciência europeia, o que se convencionou chamar de ciência tradicional.

Isso ainda é muito forte quando percebemos que os principais cientistas que referenciamos, hoje, são homens brancos, sendo que muitas mulheres participaram e participam do processo de produção do conhecimento.

Ocorre que, ao longo da história, elas foram apagadas por conta do sexismo, assim como negros e indígenas também foram apagados, tanto por conta do racismo quanto pela ausência em instituições de produção formal do conhecimento.

O que é uma “ciência preta”, termo que você usa com frequência?

Falar de uma ciência preta é reivindicar o lugar da produção de conhecimento científico de pessoas negras, assim como de suas cosmovisões. Não falo tanto de ciência indígena, porque não é algo que eu domine com tanto afinco, mas gosto muito de ler a respeito e ter algumas referências.

Se tivéssemos, no meio científico, a presença de outras cosmovisões (a indígena, a negra, as de povos africanos que foram trazidos para cá, e que geraram uma outra cosmovisão também, afro-brasileira), muito provavelmente teríamos um mundo muito melhor, com mais respeito.

Você acaba de estrear um programa sobre divulgação científica no canal GNT. Levar a divulgação para públicos mais amplos é a saída?

Acredito que a gente pode aproximar as pessoas da ciência, e facilita muito se for feito um trabalho conjunto, da sociedade, usando bem meios como a televisão, que ainda atinge um grande público.

Durante a pandemia de Covid-19, o mundo inteiro ficou trancado em casa por causa de um vírus, e era a ciência que que trazia respostas e soluções para que se pudesse voltar a ter uma vida normal.

Naquele período, muitas pessoas queriam aprender, estavam interessadas, mas não tinham conhecimento sobre ciência. Foi o trabalho de vários divulgadores de ciência que tornou possível ampliar o alcance do conhecimento ciência para além dos muros das instituições de pesquisa. Foi a divulgação científica que muitas vezes tranquilizou as pessoas, com informação verdadeira sobre os fatos.  

A bióloga e ativista feminista Bertha Lutz (1894-1976) é uma das pesquisadoras retratadas na série Ciência, substantivo feminino, apresentada pela divulgadora Kananda Eller | Imagem: Arquivo Nacional

Qual o maior desafio de levar divulgação científica para a TV e o streaming (transmissão via internet)?

O GNT é um canal que se abre para discussões de conhecimento científico e educacional – algo que a TV aberta mais tradicional não costuma fazer. Precisamos avançar muito na TV e nos streamings. Nos streamings, a gente ainda consegue encontrar conteúdo educativo de entretenimento baseado em ciência. Contudo, a TV aberta ainda é um grande desafio, quase não há programas de divulgação científica – o que é uma pena, pois toda a população perde com essa lacuna.

Pessoalmente, o que te levou a esse caminho da ciência?

Aprendi o que seria uma carreira de cientista durante a graduação. Antes disso, eu não tinha muitas referências do mundo acadêmico, o que é muito comum em famílias pretas e periféricas.

Quando entrei na universidade, entendi que precisaria fazer mestrado e doutorado para seguir uma carreira acadêmica e ficar na pesquisa. Era o que queria.

Sempre gostei muito de estudar, mas sou movida também pela transformação social, e as discussões ambientais sempre mexeram muito comigo.

Sempre estive em escolas associadas a projetos de transformação ambiental, de impacto positivo na natureza, e de trazer resoluções para o meio ambiente.

Por isso seu tema de pesquisa no mestrado?

Sim, hoje pesquiso resíduos sólidos, trabalho com um grupo de catadores de materiais recicláveis e em situação de rua em Salvador, na Bahia. Eu me dedico a estudar estas questões – resíduos e transformação de resíduos –, e a vida dos catadores, que são os trabalhadores que estão na base dessa cadeia produtiva dos resíduos sólidos.

O que você recomenda para outras pessoas que se inspiram na sua trajetória e querem seguir uma carreira na divulgação científica?

É preciso aproveitar as oportunidades que são dadas na vida acadêmica, seja estudar outros idiomas, seja conhecer outras cidades, países e culturas. Confie nas suas paixões e, a partir desse sentimento, procure entender como você pode transformar o mundo – sem ficar só nesse conhecimento “egóico” do saber pelo saber.

A gente quer produzir conhecimento para transformar o mundo. Essa paixão, unida ao conhecimento, vai permitir ter foco e disciplina para subir as etapas, pegar os diplomas, os títulos.

É preciso saber que existem lugares e cargos que só são ocupados por pessoas que acumularam muito conhecimento, estudaram muito determinadas áreas e disciplinas, os cientistas experts, especialistas em determinadas áreas. Mas saiba que vale muito a pena investir no estudo, pois é algo que nunca vão conseguir tirar da gente.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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