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29.08.2023 Impacto Ambiental

Os efeitos de gases inalatórios e anestésicos no meio ambiente

Como organizações médicas e científicas pretendem reduzir as emissões de gases de efeito estufa associadas a tratamentos e procedimentos cirúrgicos

Desflurano: gases inalatórios e anestésicos afetam o meio ambiente Ilustrações: Bruna Martins/Estúdio Voador

O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS), o sistema de saúde pública do país, anunciou no começo do ano a descontinuação do uso de desflurano, um gás anestésico, a partir de 2024. A medida tem como objetivo reduzir o impacto ambiental do NHS. A preocupação crescente com a irreversibilidade da mudança climática fez com que todos os segmentos da sociedade voltassem seus esforços para minimizá-la – e o setor da saúde também contribuiu para agravar a crise climática. No Reino Unido, os cuidados de saúde são responsáveis por quase 5% das emissões de gases de efeito estufa. Já nos Estados Unidos, a taxa é próxima de 9%.

O desflurano é um anestésico inalatório comumente usado em cirurgias e foi o primeiro alvo da força-tarefa do NHS, já que seu potencial para impactar no aquecimento global é 2.500 vezes maior que o do gás carbônico (CO2) – o grande vilão do efeito estufa.

Há uma alternativa ao desflurano, o óxido nitroso (N2O), mas como seu efeito anestésico é menos potente, ele precisa ser sendo usado em maiores concentrações. Com isso, o impacto ambiental do N2O acaba se assemelhando ao do gás desflurano – e sua permanência na atmosfera é de 114 anos. Uma possibilidade para substituir o desflurano é o anestésico sevoflurano, com impacto ambiental 15 vezes menor.

No caso do Reino Unido, onde há grande quantidade de dados disponíveis sobre o tema, sabe-se que os gases anestésicos usados em cirurgias e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) são responsáveis por 2% de todas as emissões. Com o apoio do Royal College of Anesthetists e da Association of Anaesthetists, o NHS no momento permite o uso do desflurano apenas em circunstâncias muito específicas.

Medidas como a adotada no Reino Unido podem ser observadas em outros países. O Departamento de Anestesiologia da Faculdade e Medicina da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, lançou em 2022 uma iniciativa em prol da “anestesia verde”.

O objetivo é buscar maneiras de reduzir as emissões geradas nos centros cirúrgicos. Um caminho é incentivar mais o uso de sevoflurano, de acordo com um informe divulgado no site da instituição. “A administração de sevoflurano por uma hora tem um impacto ambiental aproximado de dirigir um veículo a gasolina por 20 milhas [32 quilômetros], enquanto uma hora de desflurano é estimada em 400 milhas [643 quilômetros]”.

A situação, no entanto, é muito mais complexa do que parece – e exige ações mais abrangentes do que apenas substituir uma substância por outra. Isso fica claro com um documento produzido em 2021 pela World Federation of Societies of Anaesthesiologists (WFSA), com recomendações sustentáveis para o uso de anestesias.

De acordo com a WFSA, deve-se escolher medicamentos e equipamentos ecologicamente corretos, quando estes se mostrarem opções clinicamente seguras. Para além disso, a entidade recomenda redução do uso excessivo de recursos e mitigação do desperdício de medicamentos, água e energia por parte dos hospitais. Também sugere a inclusão da sustentabilidade ambiental como tema de pesquisa e de capacitações.

“Ainda que o desflurano não seja responsável pela maior pegada de carbono proveniente dos cuidados de saúde, trata-se de uma mudança que podemos implementar com muita facilidade na rotina médica, apenas fazendo ajustes práticos e sem prejuízos para os pacientes”, explicou ao Science Arena Clifford Shelton, editor-executivo da revista Anaesthesia Reports e professor da Escola de Medicina da Universidade de Lancaster, no Reino Unido.

“Daqui para frente, precisamos pensar nos impactos ambientais da prática médica como um todo”, diz Clifford Shelton, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido.

Shelton, que tem se debruçado sobre o assunto nos últimos anos, exemplifica a facilidade de implementar mudanças (como a relacionada ao uso do desflurano) citando dados da auditoria nacional realizada a cada três anos pelo Royal College of Anaesthetists nos hospitais do Reino Unido.

Uma das últimas edições constatou que o uso de anestesia venosa no país aumentou de 8% para 26% entre 2013 e 2021. A técnica de anestesia venosa tem sido recomendada pelas diretrizes de sustentabilidade, uma vez que pode ajudar na redução do uso de substâncias inalatórias.

Outra referência nesse debate é um guia publicado em junho do ano passado por cientistas da Austrália e dos Estados Unidos. O trabalho traz orientações sobre como as instituições podem lidar com a poluição causada por anestésicos inalatórios e reúne evidências consolidadas.

“A maioria das recomendações é imediatamente aplicável e todas podem ser alcançadas em uma década”, afirma Jodi Sherman, professora de anestesiologia da Universidade Yale, nos Estados Unidos, e uma das autoras do guia.

Para ela, as emissões de anestésicos inalatórios não serão zeradas. “No entanto, podem ser reduzidas em 90% se todas as medidas forem seguidas”, pondera Sherman, que também é fundadora do Programa de Sustentabilidade Ambiental em Saúde da Universidade Yale.

Reconhecida internacionalmente no campo da sustentabilidade em cuidados clínicos, Sherman chama a atenção para a complexidade dessa questão. “São vários fatores envolvidos quando falamos em tornar os cuidados clínicos mais sustentáveis”, ressaltou em entrevista ao Science Arena.

“Há medidas que visam reduzir o uso e o desperdício de gás anestésico, eliminar a adoção do desflurano e desativar as centrais de óxido nitroso, que gerenciam os cilindros do gás. Outras ações, porém, são mais onerosas, como o uso de anestesias intravenosas e o tratamento de gás anestésico residual.”

A pesquisadora de Yale ainda ressalta que, além dos anestésicos inalatórios, há outros medicamentos que precisam ser mais estudados do ponto de vista de seus efeitos ambientais indesejados – entre eles o hidrofluoralcano, usado no tratamento de doenças respiratórias, especialmente a asma. Esse gás é utilizado como propelente em inaladores e pode contribuir para o efeito estufa na atmosfera.

Desflurano: gases inalatórios e anestésicos afetam o meio ambiente

Asma

De acordo com dados da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), estima-se que pelo menos 300 milhões de pessoas sofram de asma no mundo e 328 milhões sejam portadoras de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Ambas estão entre as principais causas de mortalidade global.

Os dispositivos inaladores (conhecidos como “bombinhas”) melhoraram significativamente a qualidade de vida dos pacientes, mas a maioria desses dispositivos contém gases fluorados, cuja pegada de carbono é bastante significativa.

Atualmente, há três classes principais de dispositivos disponíveis:

“A pegada de carbono desses dispositivos é distinta, sendo mais intensa com os IPD”, explicou . Isso significa que novas abordagens devem ser consideradas para equilibrar as metas ambientais com a saúde e o bem-estar do paciente”, pontua a médica Marilyn Urrutia-Pereira, professora da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul, e membro do Comitê de Poluição da Sociedade Latino-americana de Alergia, Asma e Imunologia (SLAAI).

Para Urrutia-Pereira, existem várias alternativas possíveis, mas ainda é difícil fazer comparações precisas entre estudos sobre a pegada de carbono, por conta das diferentes metodologias empregadas em análises. Uma solução considerada simples para reduzir as emissões, diz ela, é incentivar o uso de inaladores de pó seco.

“Pacientes que mudam sua terapia de manutenção com IPD para IP reduzem a pegada de carbono do inalador em mais da metade, sem perda do controle da asma”, observa Urrutia-Pereira. Os inaladores de névoa suave produzem aerossóis a partir de formulações aquosas e por mecanismos diferentes dos nebulizadores, mas ainda são mais caros que os IPD e IP.

A troca, claro, não é uma opção para todos os pacientes, porque pode haver dificuldades e limitações, especialmente em idosos. A substituição de dispositivo também não pode gerar perda do controle da asma – lembrando que o melhor dispositivo é sempre aquele que o paciente consegue usar.

O controle da asma é extremamente importante para a atmosfera. Pesquisa publicada no European Respiratory Journal, com base em dados de mais de 206 mil pacientes com asma no Reino Unido, mostrou que as emissões de gases de efeito estufa podem ser menores entre pessoas que conseguem controlar a doenças no período de um ano, quando comparadas às emissões geradas por pacientes não controlados. O estudo sugere que controlar a asma pode reduzir em um terço a pegada de carbono por pessoa.

Descarte de dispositivos

Para reduzir a pegada de carbono, Urrutia-Pereira menciona outras ações, como usar inaladores reutilizáveis, produtos para tratamento mais longo (por exemplo, opções que durem 90 dias) e a reciclagem. Atualmente, menos de 1% dos dispositivos inalatórios são reciclados no mundo, marca que deveria alcançar pelo menos 81% para eliminar todas as emissões associadas ao seu descarte.

“Isso exigiria investimentos significativos e mudanças comportamentais”, diz a professora da Unipampa. “A reciclagem em locais como farmácias possibilitaria a reutilização de componentes de plástico ou alumínio. O descarte inadequado de dispositivos com doses não utilizadas é especialmente preocupante, pois eles continuam liberando gases.”

Outra orientação relativamente simples é que o uso de inaladores pressurizados dosimetrados seja feito uma vez ao dia, em vez de ser dividido em duas inalações, como normalmente é prescrito.

Desflurano: gases inalatórios e anestésicos afetam o meio ambiente
Exposição a anestésicos voláteis em centros cirúrgicos pode impactar a saúde de médicos e outros profissionais de saúde | Foto: Shutterstock

Risco no ar

Além do meio ambiente, há uma classe de pessoas já diretamente afetada pelo efeito nocivo dos anestésicos voláteis: equipes que trabalham em centros cirúrgicos carentes de sistemas de exaustão. Um estudo apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) foi um dos primeiros a avaliar instabilidade genética, morte celular e índice proliferativo em células bucais esfoliadas em médicos anestesiologistas.

Os autores, todos pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu (SP), também avaliaram os danos no DNA e determinaram as concentrações dos resíduos de gases anestésicos mais comumente usados: isoflurano, sevoflurano, desflurano e óxido nitroso.

“A exposição ocupacional não está associada à genotoxicidade sistêmica, mas resulta em instabilidade genômica, citotoxicidade e alterações proliferativas em células-alvo (mucosa bucal)”, explica o médico Leandro Gobbo Braz, vice-coordenador do programa de pós-graduação em anestesiologia da Unesp e um dos autores da pesquisa.

Outro estudo conduzido pelo mesmo grupo inovou ao avaliar marcadores genéticos e celulares em profissionais que atuam em centros cirúrgicos veterinários sem sistema de exaustão. A pesquisa mostrou associação entre a alta exposição ocupacional aos resíduos de isoflurano e alterações genéticas e celulares em anestesistas e cirurgiões.

“Esses profissionais que atuam tanto em centro cirúrgico humano quanto veterinário, no Brasil, podem ser considerados de risco para o desenvolvimento de alterações genéticas decorrentes dessa exposição”, alerta a autora principal da pesquisa, a bióloga Mariana Gobbo Braz, do Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu.

Os resíduos de gases anestésicos em salas de operação sem sistema ativo de exaustão têm sido associados a efeitos adversos à saúde. As concentrações de isoflurano e sevoflurano nas salas analisadas pelos pesquisadores da Unesp foram mais elevadas em relação ao valor limite recomendado, que é de 2 partes por milhão.

Cuidar da exaustão adequada das salas é uma das recomendações explícitas do guia de ação dos pesquisadores americanos e australianos para lidar com a poluição causada por anestésicos inalatórios. A eficiência nesse quesito, no caso, serve tanto para redução da contaminação ambiental quanto dos profissionais expostos.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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