Possíveis causas do lábio leporino
Estudo indica que doenças inflamatórias da grávida podem afetar a regulação de genes envolvidos na formação da face durante desenvolvimento do feto
Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) e da University College London, no Reino Unido, demonstrou que o lábio leporino, também conhecido como fenda lábio-palatina — uma falha na formação do lábio, do palato ou de ambos — se desenvolve durante a gestação em fetos com predisposição genética que são expostos à inflamação causada por doenças da mãe, como diabetes e obesidade. O estudo, publicado na revista Nature Communications, demonstrou que a inflamação produz substâncias capazes de inibir o gene CDH1, diminuindo a produção de uma proteína importante para a formação da face.
“O gene CDH1 produz uma proteína chamada E-caderina, que nas primeiras semanas do desenvolvimento do feto promove a migração de células-tronco para a região da face, dando origem aos lábios, boca, nariz e demais estruturas”, explica a geneticista Maria Rita Passos-Bueno, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (CEGH-USP).
De acordo com Passos-Bueno, a inibição do gene pela inflamação faz com que a velocidade de migração das células-tronco diminua. As células não chegam a se encontrar no meio do rosto, formando a fenda.
O lábio leporino afeta 1 em cada 650 nascimentos no Brasil e é a segunda causa de morte no período perinatal, que vai da 22ª semana de gestação até o 7º dia após o nascimento, segundo o Ministério da Saúde. Além de dificuldades de sucção e mastigação, a condição também pode levar a atrasos e dificuldades na fala. O problema pode ser amenizado com cirurgia.
Passos-Bueno explica que, se as duas cópias do gene CDH1 são mutadas, o feto se torna inviável. Mas, se pelo menos uma das cópias funciona – a que foi transmitida pelo pai ou pela mãe — o feto produz metade da E-caderina.
A geneticista, que acompanha famílias de portadores de lábio leporino há cerca de duas décadas, já sabia que a má formação aparece em cerca de 50% dos portadores do gene mutado e que o grau da fissura variava muito em cada paciente. “Ou seja, o gene mutado por si não causava a má formação, que dependia também de fatores ambientais. Além disso, as inflamações mais graves poderiam causar fissuras maiores”, diz a geneticista.
Para confirmar essa hipótese, os pesquisadores usaram fatores de inflamação chamados citocinas, produzidos por bactérias geneticamente modificadas, e aplicaram a substância em camundongos e rãs, além de células humana in vitro, alguns deles modificados geneticamente para carregar o gene CDH1 mutado e outros sem a mutação.
Nos animais com a mutação e que foram expostos às citocinas, formou-se uma fenda lábio-palatina comparável à dos humanos, e nas células humanas a migração das células tronco diminuiu, confirmando a contribuição dos dois fatores para a formação do lábio leporino.
Quando as citocinas foram aplicadas aos animais e ao tecido humano sem o gene mutado, o desenvolvimento e o deslocamento das células foram normais, indicando que a inflamação, por si só, não causa o lábio leporino.
“O resultado confirmava a hipótese de que a inflamação e o gene CDH1 mutado produziram a fissura”, explica Passos-Bueno. Quando os genes eram normais, porém, a inflamação não afetava o desenvolvimento. No entanto, faltava investigar os mecanismos moleculares envolvidos.
Inibição epigenética
Fazendo análises bioquímicas nos camundongos, rãs e no tecido humano in vitro que receberam as citocinas, os pesquisadores verificaram uma modificação na região do DNA que regula o gene CDH1. Essa região havia recebido um sinal molecular, conhecido como metilação, que inibe a produção de E-caderina. A metilação é um dos mecanismos epigenéticos de regulação gênica, que aumenta ou diminui a produção de proteínas sem mudar as letras do DNA. Com isso, o gene normal, que produzia apenas 50% das E-caderinas, passou a produzir ainda menos, criando o risco para a má formação.
“Em humanos, as citocinas da mãe provavelmente passam pela barreira placentária, levando a uma desregulação epigenética do gene CDH1 no feto”, supõe Passos-Bueno. Os pesquisadores denominaram o processo como ‘modelo de duas etapas’: primeiro a perda de função de uma das cópias do gene CDH1 e depois a redução da E-caderina do gene que funcionava, causada pelo processo inflamatório. Sem proteínas suficientes, a velocidade de migração das células-tronco diminui, formando a fenda.
“Entre os casos de lábio leporino, apenas 1% é causado pela mutação no CDH1”, ressalta Passos-Bueno. Segundo ela, há outros genes como o IRF6, que causa a má formação em 90%-95% dos casos, com uma influência ambiental bem menor.
No entanto, o CDH1 foi escolhido justamente porque permite entender melhor a interação entre fatores genéticos e ambientais.
“Há muitos genes envolvidos no lábio leporino e, no futuro, queremos verificar se a inflamação afeta outros genes que contribuem para a malformação”, diz Passos-Bueno.
Além disso, a combinação de CDH1 e inflamação está relacionada ao câncer gástrico, outro assunto que a pesquisadora pretende verificar se o mesmo mecanismo de duas etapas explica o desenvolvimento dessa doença.
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