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21.11.2023 Genética

Possíveis causas do lábio leporino

Estudo indica que doenças inflamatórias da grávida podem afetar a regulação de genes envolvidos na formação da face durante desenvolvimento do feto

Ilustração: Lívia Serri Francoio/Estúdio Voador

Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) e da University College London, no Reino Unido, demonstrou que o lábio leporino, também conhecido como fenda lábio-palatina — uma falha na formação do lábio, do palato ou de ambos — se desenvolve durante a gestação em fetos com predisposição genética que são expostos à inflamação causada por doenças da mãe, como diabetes e obesidade. O estudo, publicado na revista Nature Communications, demonstrou que a inflamação produz substâncias capazes de inibir o gene CDH1, diminuindo a produção de uma proteína importante para a formação da face.

“O gene CDH1 produz uma proteína chamada E-caderina, que nas primeiras semanas do desenvolvimento do feto promove a migração de células-tronco para a região da face, dando origem aos lábios, boca, nariz e demais estruturas”, explica a geneticista Maria Rita Passos-Bueno, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (CEGH-USP).

De acordo com Passos-Bueno, a inibição do gene pela inflamação faz com que a velocidade de migração das células-tronco diminua. As células não chegam a se encontrar no meio do rosto, formando a fenda.

O lábio leporino afeta 1 em cada 650 nascimentos no Brasil e é a segunda causa de morte no período perinatal, que vai da 22ª semana de gestação até o 7º dia após o nascimento, segundo o Ministério da Saúde. Além de dificuldades de sucção e mastigação, a condição também pode levar a atrasos e dificuldades na fala. O problema pode ser amenizado com cirurgia.

Passos-Bueno explica que, se as duas cópias do gene CDH1 são mutadas, o feto se torna inviável. Mas, se pelo menos uma das cópias funciona – a que foi transmitida pelo pai ou pela mãe — o feto produz metade da E-caderina.

A geneticista, que acompanha famílias de portadores de lábio leporino há cerca de duas décadas, já sabia que a má formação aparece em cerca de 50% dos portadores do gene mutado e que o grau da fissura variava muito em cada paciente. “Ou seja, o gene mutado por si não causava a má formação, que dependia também de fatores ambientais. Além disso, as inflamações mais graves poderiam causar fissuras maiores”, diz a geneticista.

“Com metade da E-caderina, o feto poderia se desenvolver normalmente, porém a inflamação parecia aumentar o risco”, conta Passos-Bueno, da USP.

Para confirmar essa hipótese, os pesquisadores usaram fatores de inflamação chamados citocinas, produzidos por bactérias geneticamente modificadas, e aplicaram a substância em camundongos e rãs, além de células humana in vitro, alguns deles modificados geneticamente para carregar o gene CDH1 mutado e outros sem a mutação.

Nos animais com a mutação e que foram expostos às citocinas, formou-se uma fenda lábio-palatina comparável à dos humanos, e nas células humanas a migração das células tronco diminuiu, confirmando a contribuição dos dois fatores para a formação do lábio leporino.

Quando as citocinas foram aplicadas aos animais e ao tecido humano sem o gene mutado, o desenvolvimento e o deslocamento das células foram normais, indicando que a inflamação, por si só, não causa o lábio leporino.

“O resultado confirmava a hipótese de que a inflamação e o gene CDH1 mutado produziram a fissura”, explica Passos-Bueno. Quando os genes eram normais, porém, a inflamação não afetava o desenvolvimento. No entanto, faltava investigar os mecanismos moleculares envolvidos.

Inibição epigenética

Fazendo análises bioquímicas nos camundongos, rãs e no tecido humano in vitro que receberam as citocinas, os pesquisadores verificaram uma modificação na região do DNA que regula o gene CDH1. Essa região havia recebido um sinal molecular, conhecido como metilação, que inibe a produção de E-caderina. A metilação é um dos mecanismos epigenéticos de regulação gênica, que aumenta ou diminui a produção de proteínas sem mudar as letras do DNA. Com isso, o gene normal, que produzia apenas 50% das E-caderinas, passou a produzir ainda menos, criando o risco para a má formação.

“Em humanos, as citocinas da mãe provavelmente passam pela barreira placentária, levando a uma desregulação epigenética do gene CDH1 no feto”, supõe Passos-Bueno. Os pesquisadores denominaram o processo como ‘modelo de duas etapas’: primeiro a perda de função de uma das cópias do gene CDH1 e depois a redução da E-caderina do gene que funcionava, causada pelo processo inflamatório. Sem proteínas suficientes, a velocidade de migração das células-tronco diminui, formando a fenda.

“Até onde eu sabia, existem poucos trabalhos que demonstrem os mecanismos moleculares que fazem com que fatores ambientais afetem os genes nas malformações humanas”, diz Karina Griese Oliveira, geneticista do Hospital Israelita Albert Einstein, que não participou do estudo.

“Entre os casos de lábio leporino, apenas 1% é causado pela mutação no CDH1”, ressalta Passos-Bueno. Segundo ela, há outros genes como o IRF6, que causa a má formação em 90%-95% dos casos, com uma influência ambiental bem menor.

No entanto, o CDH1 foi escolhido justamente porque permite entender melhor a interação entre fatores genéticos e ambientais.

“Há muitos genes envolvidos no lábio leporino e, no futuro, queremos verificar se a inflamação afeta outros genes que contribuem para a malformação”, diz Passos-Bueno.

Além disso, a combinação de CDH1 e inflamação está relacionada ao câncer gástrico, outro assunto que a pesquisadora pretende verificar se o mesmo mecanismo de duas etapas explica o desenvolvimento dessa doença.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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